Com movimentos certeiros, Francisco, o pastor, vai cortando a lã, com a tesoura rente à pele da ovelha. Encostado às suas pernas, o animal não se queixa: está sossegado como um cordeiro - literalmente. Estamos na Herdade do Espanhol, no concelho de Castro Verde, e a tosquia serviu ao festival Terras Sem Sombra para olhar o ciclo da lã, os ritmos dos rebanhos e a biodiversidade que deles depende, neste território a que chamam Campo Branco, e que com a perda da importância económica da lã enfrenta dificuldades..Era assim, à tesoura, que antigamente se fazia a tosquia, e foi assim que Francisco primeiro a aprendeu, "há tantos anos já", que não sabe dizer quantos. Por isso veio mostrá-la nesta ação dedicada à biodiversidade do Terras Sem Sombra. O festival é uma iniciativa do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja e cumpre este ano a 13.ª edição, com as suas marcas inconfundíveis de itinerância, aliando a música sacra, a biodiversidade e o património..Desta vez, a ideia foi mostrar como a natureza nesta região, com destaque para a sua avifauna - as enormes abetardas serão as mais emblemáticas - , está ligada ao ciclo da lã, no qual ovelhas e pastores são personagens centrais. Daí a tosquia, que os participantes também quiseram experimentar, embora se percebesse logo que manejar a enorme tesoura não é, afinal, tão fácil como parece nas mãos treinadas de Francisco. Ao lado dele, o filho fazia a mesma operação, mas bem mais depressa, com a máquina elétrica que hoje se utiliza na operação..Mais rápida, ou mais lenta, no entanto, a tosquia, hoje, não compensa economicamente, porque, como diz Pedro Rocha, diretor regional do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) do Alentejo, e consultor para a biodiversidade do Terras Sem Sombra, "o preço da lã mal dá para pagar a tosquia". E isso é um problema, porque põe um pauzinho na engrenagem deste ecossistema.."A boa gestão do pastoreio da ovelha é propícia a aves como a abetarda, o sisão, o alcaravão, o peneireiro-das-torres ou a calhandra-real, espécies deste tipo de ambientes chamados estepes cerealíferas, que são idênticos aos que existem no Leste da Europa", explica Pedro Rocha. E sublinha: "Estes habitats estão hoje extremamente ameaçados por causa da intensificação agrícola nos últimos 40, 50 anos da política agrícola comum"..Foi isso que o Terras Sem Sombra quis mostrar. "Esta ação pretendeu chamar a atenção para o problema. A lã, apesar de ser um produto renovável e natural, está muito desvalorizada, o valor que se recebe da lã quase não paga a tosquia", explica Pedro Rocha..A invasão do poliéster, das fibras derivadas de petróleo ou "dos algodões de natureza duvidosa", como se lhes refere - "há desastres ambientais associados à cultura do algodão por esse mundo fora", garante Pedro Rocha -, ditou a queda do valor da lã. E, no entanto, em tempos, "eram os rebanhos da Península Ibérica que vestiam a Europa", nota, por seu turno, José António Falcão, diretor do Terras Sem Sombra..Já lá vai. Há uma grande alteração no setor pecuário e uma das principais razões, diz Pedro Rocha, "é que a ovelha exige um maneio maior e a vaca tem subsídios mais elevados". Por isso a vaca está a substituir a ovelha nestes territórios, "embora tenha muito menos interesse para a biodiversidade" e para a paisagem. "Além disso", assinala Pedro Rocha, em terrenos como estes, "menos produtivos, isso cria mais dificuldades ao próprio território e à conservação de espécies emblemáticas, como a abetarda, porque as pastagens tornam-se mais intensivas e são mais pisoteadas". Pedro Rocha defende, por isso, "um trabalho de valorização da lã", que, diz, "é um produto sustentável, de um animal que está associado à biodiversidade"..O caso da abetarda é, aliás, ilustrativo. A espécie, a maior ave europeia, sofreu um grande declínio em toda a Europa, e por cá também, a partir do início do século XX. Há 20 anos restavam 400 exemplares em Portugal, mas as últimas duas décadas não foram perdidas. A Liga para a Proteção da Natureza (LPN) lançou um programa para a conservação da espécie, com o apoio do município, que classificou 85% do seu território como Rede Natura 2000, interditou a florestação por eucaliptos e lançou um plano zonal para os agricultores cultivarem pequenas parcelas de cereal para as aves. Hoje já existem cerca de 1200 abetardas..Castro Verde quer ser Reserva da Biosfera da Unesco.Sob o lema um "ecossistema humanizado de alto valor natural", o município de Castro Verde fez no ano passado uma candidatura a Reserva da Biosfera da Unesco, cujo desfecho está para breve. "Aguardamos uma resposta em maio que esperamos que seja positiva", adianta o presidente da Câmara de Castro Verde, Francisco Duarte. Aquela, diz, foi a sequência natural "de todo o trabalho feito na defesa da biodiversidade e dos valores da natureza e dos saberes tradicionais, nas últimas duas décadas". Se a resposta for positiva, abrem-se perspetivas novas de turismo da natureza, por exemplo, e de valorização de todo o concelho.