Kubrick: nascido para filmar
Nunca haverá estudos e documentários suficientes para decifrar o monólito Kubrick. Não porque a sua obra seja vasta - 13 longas-metragem ao longo de cinco décadas -, mas porque cada filme deste realizador americano se presta a leituras complexas, e, por inerência, incentiva a efabulação do génio. Seja como for, a chegada de mais um documentário distingue-se do mero efeito de acumulação ensaística. Kubrick na Voz de Kubrick, como se sugere, traz um novo elemento, em sentido literal. A voz para lá de uma aceção genérica; a voz de origem física, humana, veículo do discurso direto. Essa que o crítico francês Michel Ciment, munido de um gravador, registou nas conversas que teve com Stanley Kubrick na sua casa de Hertfordshire, no sul de Inglaterra, em encontros espalhados por uma década. Material valiosíssimo, uma vez que o cineasta raramente tolerava entrevistas (essa postura faz parte da mitologia), e uma estrutura sonora a partir da qual Gregory Monro ergueu uma abordagem intelectual sem gorduras: só importa o que diz Kubrick. E, já agora, o que diz Ciment sobre Kubrick.
É verdade que também se recuperam aqui arquivos de entrevistas de atores que com ele trabalharam - Malcolm McDowell, com um brilho nos olhos, Jack Nicholson, Shelley Duvall, Sterling Hayden ou Tom Cruise -, sendo predominantes as memórias à volta da quantidade absurda de takes que, nos anais das rodagens, ratificaram o perfecionismo do realizador. Mas nada disto distrai da essência que é ouvir essa voz sem corpo, espécie de dádiva do além que nos faz viajar pela filmografia à boleia de um discurso enxuto, racional, embora nunca humanamente distante.
"Ele não era nada como os jornais o descrevem." As palavras da mulher de Kubrick, Christiane, que se apanham logo no início do documentário, assinalam também o propósito desta revisitação. Monro quer desconstruir um pouco o mito. E a voz, por mais encantamento que exerça, é a hipótese de espreitar os traços da personalidade sem o ruído da especulação. Kubrick by Kubrick dá-nos alguém que começa por resistir à explicação teórica dos seus filmes, mas contorna isso com o tecer gradual de um pensamento, partindo de aspetos ligados à pesquisa, ao método, à técnica e consciência visuais (rigor que lhe ficou do princípio de carreira como fotógrafo), ao processo da rodagem em si, e só depois chegando às questões que marcam as narrativas dos filmes, da civilização à violência, da guerra à inteligência das máquinas.
Ao manter esta abordagem minimalista, só com uma elegante reconstituição do quarto de hotel de 2001: Odisseia no Espaço, onde vão surgindo objetos e cartazes dos filmes, Monro permite-nos degustar uma brilhante lição de cinema, sem o excesso das habituais cabeças falantes - na linha do que Maximilian Schell fez em Marlene (1984), o documentário só com a voz de Dietrich. Kubrick, que a certa altura, sem falsa modéstia, se compara a Napoleão no comando das suas tropas num campo de batalha (leia-se filme), é tudo o que precisamos para divagar sobre a obra de... Kubrick. Não há eloquência maior que a do realizador-fantasma a falar-nos através do leve rumor da fita a correr.