Kleber Mendonça Filho: "Manoel de Oliveira foi o meu amigo imaginário em Retratos Fantasmas"
A memória dos cinemas desaparecidos e encerrados no centro do Recife é a mesma que pesa sobre o flagelo das salas que foram fechando em Lisboa, Porto ou em muitas outras cidades do mundo. A nostalgia da cinefilia mais cerrada é coisa universal, coisa que une. É esta, pode ser esta, a conclusão desta investigação de Kleber Mendonça Filho sobre a sua cidade natal em Retratos Fantasmas, um documentário que é essencialmente um cartão de reafirmação dos seus princípios de cinema. O cineasta de Aquarius, Som ao Redor e Bacurau assina uma vertiginosa ode ao prazer de ver cinema nas salas e enceta uma teoria: a cinefilia como valor sagrado que pode conter pistas do sobrenatural e de uma forma única de ver e de estar com o mundo e as cidades.
Aplaudido no Festival de Cannes e, mais recentemente, no Curtas Vila do Conde, Retratos Fantasmas é ainda uma proposta de colocar as ruínas dos cinemas fechados como uma possibilidade de ficção, nem que para isso surjam homens invisíveis ou evocações de filmes também fantasmas. A fantasia como espaço de verdade do cinema documental. Sobre isso e algo mais, o pernambucano falou numa conversa com o DN precisamente em Vila do Conde.
Ouvimos no filme uma frase em que se diz a ficção é o novo documentário, mas no final parece que fica uma outra ideia na qual se profetiza que o documentário é a nova ficção...
Gosto mesmo dessa ideia de quando estamos a ver dois personagens num filme podermos ter em conta aquilo que está a atrás deles, desde a rua aos carros a passarem. Neste filme, ficamos muito com aquilo que está atrás das pessoas...Gosto que os meus filmes ofereçam essa possibilidade.
Mas em Retratos Fantasmas a ficção surge do documental...
(risos). Sim, estou a desmerecer o ofício do documental mas é óbvio que o filme tem muitas realidades. Realidades com muitos pontos de vista que são meus, bem pessoais e às vezes forjados. Por isso, tenho dificuldade em dizer que isto é um documentário, mas ok, para não eternizar as discussões, abraço o termo.
E o seu retrato da cidade do Recife é também um retrato do Kleber, não?
Sim, é um autorretrato, tal como já eram os meus outros filmes. Fica muito claro, não é? Eu tiro a máscara! Afinal, era sempre eu. Mas aqui estou literalmente em casa, com todo o equipamento e textura de imagem que não deixa de ser uma prova visual, como aquele cartaz do Disponível para Amar, na minha sala em 2002, ou quando surjo em 1990 em minha casa numa festa em que ouvimos The Cure. São documentos na mesma sala.
Quer se queira quer não, Retratos Fantasmas funciona como uma exéquia das salas de cinema que fecharam. Porém, o Kleber não filma esse fim como uma tragédia.
Pois não, evitei que fosse saudosista. Retratos Fantasmas mostra os efeitos do tempo, a sua passagem que afeta o comportamento social e tendências de indústria. Na verdade, esses cinemas tornaram-se obsoletos. Testemunhei o fim de várias salas no Recife há 30 anos...Fiquei triste com esse fim mas nunca teria a cara dura para protestar contra o encerramento - para mim, era até uma surpresa eles terem estado abertos tanto tempo. Percebia-se que não havia condições, o fim das grandes salas não foi uma morte súbita. Foi o fim de um sistema que já tinha acabado. O filme está repensado nessa lógica: tornou-se um objeto sobre como uma cidade muda e as suas ruínas.
Vemos a memória dos marquees, dos placards com as letras dos filmes. Isso leva-nos a pensar que agora, sem isso, as salas tornam o conceito de cinema mais invisível...
Isso é interessante pois está mais invisível mas é mais omnipresente. Agora, no telemóvel podemos procurar as cenas preferidas de qualquer filme. Naquela época, estávamos à mercê da programação dos cinemas e a única alteração foi a chegada dos VHS, nos anos 1980. Mas muitas vezes tínhamos realmente de esperar por um dia no futuro termos a oportunidade de rever este ou aquele filme. Os filmes voltavam, não sabíamos é quando.
Tem tido uma relação fiel com Portugal, sobretudo na vinda a festivais de cinema. Que tipo de fascínio tem pelo nosso cinema?
Adoro o cinema português! Trate-se de um cinema com um ponto de vista totalmente incomum. São filmes com muita personalidade. Manoel de Oliveira foi o meu amigo imaginário em Retratos Fantasmas devido ao Visita ou Memórias e Confissões, aquele seu filme maravilhoso sobre a sua casa no Porto. Mas Porto da Minha Infância também foi muito importante! Vi-o no Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira e o impacto foi muito grande. Ainda no outro dia passeava no Porto e dei por mim a andar dentro do filme. Este Carnaval, nas ruas do Recife, tive a mesma sensação com este meu filme. Houve uma noite em que me senti mesmo dentro de Retratos Fantasmas!
O cinema é contaminação, sobretudo se o realizador for cinéfilo...
Vi o Visita ou Memórias ou Confissões em 2015 em Cannes, depois apanhei um avião e literalmente comecei a pré-produção de Aquarius, um filme sobre uma casa! Não existem coincidências...Mas sim, a minha relação com Portugal é boa. A coisa da língua é aquela sensação de estar na casa do avô, é um pouco cliché mas é verdade. Tão estranho!
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