Kissinger admitiu que se enganou em ver Portugal como uma vacina anticomunista
Fala-se muito de Henry Kissinger olhar para a possibilidade de o comunismo triunfar em Portugal em 1974-1975 como espécie de vacina contra a força de outros partidos comunistas na Europa Ocidental, nomeadamente em França e em Itália. Ou seja, o comunismo falharia depois em Portugal e serviria de vacina europeia. A tese existiu mesmo?
Esta tese existiu mesmo e tem de ser entendida dentro desse contexto da pergunta. Henry Kissinger diria que Portugal, no contexto mais vasto da Guerra Fria e da situação particular que se vivia na Europa do Sul nesse período, era importante porque era um país membro da NATO, era um país que tinha a base americana das Lajes e era o primeiro país membro da NATO a ter comunistas no governo, nomeadamente nos governos provisórios. Portugal importava por si próprio, mas importava ainda mais dado o contexto internacional da época, nomeadamente o que parecia ser o avanço do comunismo um pouco por toda a Europa do Sul, com o perigo de os partidos comunistas chegarem ao poder em França com o programa comum com os socialistas de François Mitterrand, na Itália com o compromisso histórico entre os democratas-cristãos de Aldo Moro e o PCI, na própria Grécia havia um processo de transição de poder, na sequência da queda do governo dos coronéis por causa da guerra de Chipre, e sabia-se que historicamente os comunistas tinham tido bastante influência no país. E mesmo em Espanha sabia-se que Franco estava doente e que mais cedo ou mais tarde morreria e podia haver um processo de transição.
Mário Soares e o embaixador americano em Portugal, Frank Carlucci, vão contrariar essa tese de Kissinger e com sucesso, mas há um embate dentro da Administração americana entre aqueles que apostavam na tese da vacina e os que queriam manter Portugal a todo o custo no lado americano?
Exatamente. Havia a ideia de que todo o flanco sul da NATO estava a esboroar e os Estados Unidos não podiam fazer nada, naquele contexto da altura. Portugal ia tornar-se comunista, era o que Kissinger dizia. Os ministros vão ser comunistas, vai ganhar a revolução, o que se pode fazer é que Portugal seja uma vacina, isto é, um exemplo, um país empobrecido, instável, isolado. Se fosse uma vacina, tudo isso seria um exemplo a não ser seguido por França, Itália, Grécia e Espanha. Depois havia outra tese, a tese de Frank Carlucci, que pode ser classificada como a tese do apoio às forças moderadas não comunistas e o que definia era que Portugal não se tornaria um país comunista, muito pelo contrário, o mais normal era que ganhassem as forças democráticas, desde que os Estados Unidos entendessem o seguinte: a revolução portuguesa foi uma revolução de esquerda, muito à esquerda, na sequência de uma ditadura de direita de quase 50 anos. Por isso, o que os Estados Unidos podiam fazer era apoiar as forças de esquerda não comunistas e não andar a apoiar aventuras de spinolistas ou de separatismo açoriano.
Gerald Ford vai ser mais fiel a essa segunda tese?
Ford acaba por ser o presidente essencial de todo o período, porque Richard Nixon resigna em agosto de 1974, na sequência do escândalo do Watergate, e o que acontece é fundamentalmente durante a presidência Ford. O que é que Carlucci considera? Carlucci considera que as forças democráticas não comunistas podem vencer, desde que devidamente apoiadas pelo exterior, sobretudo por quatro fatores principais. Primeiro, porque Portugal é um país do extremo ocidental da Europa, muito longe da União Soviética e do Exército Vermelho. Depois, porque Portugal tinha a esmagadora maioria das suas relações comerciais com a Europa Ocidental, 96% ou 97% das suas trocas comerciais. Também porque Portugal tinha uma estrutura agrícola de pequena propriedade privada da terra, com a exceção a ser o Alentejo. Portugal era igualmente um país membro da NATO e havia fortes ligações entre os militares portugueses e os militares e estruturas da NATO. E Portugal era um país muito católico, tinha uma fortíssima igreja católica. Portanto, se os jornais apoiassem as forças militares portuguesas de esquerda não comunistas essas forças venceriam, e penso que tem que ver com o resultado das eleições para a Assembleia Constituinte e a vitória que o Partido Socialista teve no país todo nas eleições.
Ou seja, em abril de 1975, a tese de Carlucci dá-se como provada contrariando a de Kissinger.
As eleições de abril de 1975 o que fazem é colocar o Partido Socialista como um interlocutor privilegiado, não o único, mas privilegiado, dos Estados Unidos nesse contexto.
Voltando um pouco atrás, a 1973 ainda com Nixon como presidente, temos a guerra do Yom Kippur em que Kissinger é importantíssimo para o desfecho final, mas Portugal também, porque é o único país da NATO que autoriza que os Estados Unidos usem as suas bases para armar Israel. Esse é outro momento importante de Kissinger e Portugal?
É, é um momento muito importante, porque de facto Kissinger estabelece uma ligação permanente com o governo português, então ainda governava Marcelo Caetano, e de alguma maneira força a que Portugal permita, ao contrário dos outros aliados europeus, que os Açores sejam o epicentro da ponte aérea que os Estados Unidos da América fazem para apoiar militarmente Israel na Guerra do Yom Kippur. E isso é absolutamente crucial para reverter o curso da guerra, porque como é sabido o ataque do Egito e da Síria, num primeiro momento, parecia que ia ser bem-sucedido e é o apoio que os Estados Unidos da América vão dar a Israel a nível militar, e que passa pelas Lajes, que acaba por virar o curso da Guerra do Yom Kippur. Portugal tem um papel fundamental e através de uma ligação direta entre Kissinger e as autoridades portuguesas.
E relativamente a Kissinger e à descolonização portuguesa? Não tanto em África, mas o ok que os americanos terão dado à invasão de Timor-Leste pelos indonésios em final de 1975? Isto também acontece no tal contexto da Guerra Fria?
É exatamente isso. Só se compreende Kissinger se percebermos que vivíamos na altura em Guerra Fria, num sistema bipolar, numa competição política, ideológica, económica, existencial entre o mundo comunista e o mundo capitalista, liderados pela União Soviética e pelos Estados Unidos. E é isso que explica também o comportamento dele em Timor, a ideia que havia, particularmente forte nessa altura, que a instabilidade do dominó, a ideia de que bastava que caísse um país numa região para o comunismo, que depois isso acabaria por fazer cair todos os outros. O receio é que se caísse Timor, também a Indonésia pudesse cair eventualmente para o comunismo e outros países.
Estamos a falar de meses depois da queda de Saigão, da reunificação do Vietname, e portanto, Timor podia tornar-se comunista e a própria Indonésia podia ser arrastada nesse turbilhão?
Exatamente. Isso é agravado. Aliás, o próprio envolvimento militar americano na Indochina é feito em nome dessa ideia do dominó. Portanto, isso ainda agrava mais, como diz e bem, o facto de ter acontecido isto em Timor em pleno debacle na Indochina.
Kissinger esteve em Portugal há meses, já centenário. Tem ideia se fez alguma vez um elogio ao sucesso da democracia portuguesa?
Fez, e logo em 1976, quando Mário Soares vai aos Estados Unidos já depois do 25 de novembro, já concluído o PREC. Kissinger reúne em Washington o seu staff todo do Departamento de Estado e diz-lhes, com Soares à frente, e gerando risos, "como sabem, sou uma pessoa que nunca se engana, mas devo reconhecer que no caso de Portugal enganei-me. De facto, as forças democráticas foram capazes de vencer as forças do Partido Comunista".