Kate Winslet, a detetive lá da terra
Na terrinha toda a gente se conhece. Esta é a verdade absoluta sobre a qual se ergue uma minissérie como Mare of Easttown, produção HBO com as suas personagens feridas pela vida, cansadas e presas à existência comunitária numa pequena cidade da Pensilvânia. O retrato não é propriamente novo, mas raras vezes as produções televisivas mergulham de cabeça, e sem tiques hollywoodescos, na realidade da classe trabalhadora como aqui se vê. Com um à-vontade magoado, os residentes tratam-se pelo primeiro nome, conhecem as tragédias uns dos outros e a tristeza generalizada reflete-se num ambiente áspero que está sempre à beira de manifestações violentas. Há um caso por resolver de uma rapariga desaparecida e da sua mãe que não desiste de pressionar as autoridades locais, e o assassinato de outra jovem dá uma nova luz à investigação a cargo de Mare, a detetive da polícia interpretada por uma Kate Winslet de rosto duro, sem maquilhagem ou peneiras, a lidar secretamente com os seus próprios fantasmas.
Realizado por Craig Zobel (A Caçada) e escrita por Brad Ingelsby - que assinou o argumento original do recente O Caminho de Volta, filme que conta a história da reabilitação de um homem com problemas de alcoolismo, servindo de catarse para o protagonista Ben Affleck - Mare of Easttown tem um sentido de detalhe em relação ao modo de vida num meio pequeno que, apetece dizer, parte do mesmo princípio de autenticidade por trás da personagem assumida por Affleck no outro filme. No caso de Mare of Easttown, Ingelsby, que cresceu numa pequena cidade perto da que é retratada na minissérie, inspirou-se nas particularidades dessa vivência para criar um núcleo dramático genuíno. De resto, Kate Winslet, que lidera os acontecimentos, respondeu à convocação com uma entrega admirável.
É sobre ela que recai toda a disfunção da comunidade, para lá de uma complexa conjuntura doméstica. Divorciada, mas com o ex-marido na porta ao lado, noivo de outra mulher, Mare vive com a mãe (excelente Jean Smart), a filha adolescente (Angourie Rice) e um neto de 4 anos (o debutante Izzy King) que foi deixado à sua guarda na sequência da morte do filho mais velho... Esta é a tragédia íntima, coberta por um manto de silêncio, que a protagonista vai ter de enfrentar, de uma vez por todas, ao longo da investigação. Isto porque o que está em causa, episódio a episódio (são sete), é o ultrapassar de um trauma pessoal à medida que os trabalhos no terreno avançam.
A tentar despertar a simpatia de Mare, escondida numa postura de casca grossa, há um detetive do condado (Evan Peters) que chega à cidade para a ajudar na investigação, enquanto olhar externo às dinâmicas humanas do local. Porém, quem tem mais sucesso nessa abordagem é um escritor com pose romântica interpretado por Guy Pearce - o ator que fazia par com Winslet em Mildred Pierce (2011), outra minissérie da HBO. Em todo o caso, nenhum deles consegue competir em carisma com Jean Smart no papel da mãe que quebra a melancolia do quotidiano com discussões fenomenais, dignas da grande tradição "mães velhas e filhas de meia-idade a viver debaixo do mesmo teto".
Mas é essencialmente nas linhas do policial e do drama que Mare of Easttown se define, entre personagens que concorrem para nos fazer acreditar na textura daquela realidade fechada, ao mesmo tempo que funcionam como peões num jogo de suspeitos. O argumento de Ingelsby não tenta sequer ser discreto nesse aspeto: a cada episódio atiram-se verdades obscuras, gestos e olhares que comprometem diferentes personagens (um pouco como acontece em The Undoing), e o avolumar da incerteza diz-nos que, mesmo aquelas pessoas que Mare conhece desde sempre, podem ser capazes do impensável.
Da sua parte, Winslet leva tudo com uma subtileza arrepiante, quer na evidência da dor silenciosa quer no trato social pouco amistoso (mas não exatamente rude). Esta é a mulher que se apresenta de rompante em qualquer lugar e diz o que tem a dizer em frente a quem quer que seja, sem pedir desculpa ou mostrar o crachá. Pelo estilo, podia ser uma Frances McDormand, mas a forma como Kate carrega a angústia não pede comparações. Ela põe no grau zero o que poderia restar da sua sofisticação britânica e "desaparece" num corpo que se alimenta a pizas e cerveja, com uma depressão mal curada.
A verdade é que talvez nunca tenhamos visto Winslet assim, tão humana, tão pouco estrela de Hollywood. E o primeiro a pasmar com o desempenho da atriz foi o criador de Mare of Easttown. Numa entrevista à revista Forbes, Brad Ingelsby fala da vontade que Winslet tinha de mudar o registo: "Ela disse-me que nunca pegou numa arma em qualquer dos papéis que fez. Estava à procura de um desafio, queria interpretar uma personagem que fosse completamente diferente dela própria." Pois bem, conseguiu. Mare não se parece com nada do que estamos habituados a ver da atriz.
Já sobre os elementos do thriller, Ingelsby sublinha a necessidade de nos manter seduzidos, sem perder de vista a honestidade: "Não se pode enganar os espectadores. A ideia é que eles se liguem de uma forma profundamente emocional, e assim, quando se der a revelação, se importem realmente com aquelas pessoas." De facto, tudo vai dar à matéria humana. Da mesma maneira que toda a gente se conhece na terrinha, seja ela qual for, também aqui o espectador fica familiarizado com os dramas individuais de uma pequena cidade da Pensilvânia.
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