Não é, obviamente, um facto isolado: o prestígio de muitos atores e atrizes permite-lhes envolverem-se nas produções que protagonizam, influenciando a respetiva conceção dramática ou narrativa, na prática tirando partido do poder efetivo de ser uma estrela. De qualquer modo, podemos supor que não terá sido uma mera questão de produção a motivar o envolvimento da atriz inglesa. Se é verdade que, para o melhor ou para o pior, a sua "imagem de marca" está associada a personagens de raiz ou aparência aristocrata - a começar, claro, pela jovem Rose Dewitt Bukater de Titanic (1997) -, pode dizer-se que o papel de Mare Sheehan, detetive de uma cidadezinha da Pensilvânia, nos arredores de Filadélfia, lhe permite aquilo que qualquer intérprete inteligente sempre procura: arriscar em registos que contrariam a ilusória estabilidade da sua fama, neste caso muito longe de qualquer sugestão de "glamour"..Mare é uma figura de fascinantes contrastes dramáticos, ligada à terra, alheia a qualquer "pureza" aristocrata. Além do mais, vive num turbilhão emocional: da frieza intelectual com que é seu dever investigar os crimes que assombram Easttown aos conflitos crónicos com a mãe e a filha, passando pela pesada herança emocional de um filho que se suicidou... Na verdade, está longe de ser uma vulgar intriga policial, multiplicando suspeitas em torno de um pequeno núcleo de personagens. Claro que esse jogo de inocência e culpas, com o seu quê de Agatha Christie, está na série criada e escrita por Brad Ingelsby, com realização de Craig Zobel. Ainda assim, o que nos envolve, confunde e seduz decorre de uma teia de relações que vai sendo desvendada para lá da banalidade de um quotidiano contaminado por muitos fantasmas e bizarrias..CitaçãocitacaoKate Winslet teve uma sólida formação teatral, ganhando experiência nos palcos e começando a trabalhar, a partir dos 16 anos, em pequenos papéis de séries televisivas. Talvez se possa dizer que esses princípios lhe serviram para aprender a respeitar a complexidade de cada personagem..Nesta perspetiva, Mare of Easttown é uma série devedora da herança de um certo cinema clássico de Hollywood, muitas vezes de inspiração literária, focado precisamente nas atribulações de pequenas comunidades - lembramo-nos, por exemplo, da obra de Vincente Minnelli e de títulos como Paixões sem Freio (1955) ou A Herança da Carne (1960). Aí deparamos com ambientes que refletem o apelo utópico do "Sonho Americano", celebrando uma ideia de povo que, não poucas vezes, se desagrega de forma trágica. Mildred Pierce, uma série da HBO lançada em 2011, também protagonizada por Kate Winslet, poderá ser outra referência exemplar: baseada no romance de James M. Cain, com direção de Todd Haynes, nela encontramos um retrato contundente do período da Grande Depressão, oscilando entre a crueza realista e a impossível atração do romantismo..É um facto que alguns dos papéis mais conhecidos de Kate Winslet são indissociáveis da produção de Hollywood, incluindo, claro, Titanic e O Despertar da Mente (2004), de Michel Gondry, este uma espécie de "love story" virada do avesso, a meio caminho entre nostalgia romântica e absurdo poético, contracenando com Jim Carrey. Seja como for, há um primeiro capítulo da sua filmografia que envolve três filmes eminentemente britânicos, pela produção e também pela inspiração literária: Sensibilidade e Bom Senso (1995), a partir de Jane Austen, com realização de Ang Lee (curiosamente, um cineasta de Taiwan); Jude (1996), uma adaptação de Thomas Hardy por Michael Winterbottom; e Hamlet (1996), uma das variações "shakespearianas" que Kenneth Branagh interpretou e dirigiu. Isto sem esquecer que quem lhe ofereceu o primeiro papel em cinema foi o neozelandês Peter Jackson, com Amizade sem Limites (1994), uma história policial filmada em tom mais ou menos sarcástico..Kate Winslet nasceu em 1975, o que quer dizer que tinha 20 anos quando fez Sensibilidade e Bom Senso. Dir-se-ia que estava aberto o caminho para uma carreira de sucessivas variações sobre o modelo de "dama britânica", tão querido da tradição de Hollywood - o filme valeu-lhe, aliás, a sua primeira nomeação para um Óscar (atriz secundária). O certo é que o trabalho que se seguiu nunca se deixou acomodar num qualquer estereótipo dramático ou cultural..O sucesso planetário de Titanic foi rapidamente "contrariado" por alguns filmes de registo bem diverso, incluindo um retrato do Marquês de Sade: com Geoffrey Rush no papel do marquês e realização de Philip Kaufman, chama-se Quills - As Penas do Desejo (2000) e ainda hoje permanece como um objeto "selvagem", muito pouco conhecido. Vimo-la também em Iris (2001), de Richard Eyre, interpretando a jovem escritora Iris Murdoch (com Judi Dench nas sequências da velhice), e À Procura da Terra do Nunca (2004), outro título infelizmente de modesta circulação, em que Marc Forster revisita a vida do escritor J. M. Barrie (interpretado por Johnny Depp) e, em particular, as circunstâncias que fizeram nascer o seu Peter Pan..Apesar das dificuldades financeiras da família durante a infância e adolescência, Kate Winslet teve uma sólida formação teatral, ganhando experiência nos palcos e começando a trabalhar, a partir dos 16 anos, em pequenos papéis de séries televisivas. Talvez se possa dizer que esses princípios lhe serviram, acima de tudo, para aprender a respeitar a complexidade de cada personagem, seja qual for o seu perfil dramático. Num filme recente, Ammonite, escrito e realizado por Francis Lee, assume a personagem de Mary Anning, lendária paleontologista da primeira metade do século XIX. Analisando a ambivalência dos seus comportamentos sexuais, nomeadamente na relação com a geóloga Charlotte Murchison (Saoirse Ronan), Kate Winslet declarou à revista Vanity Fair (setembro 2020): "Poder representar esta personagem que revela tão especial afeto por alguém do mesmo sexo foi uma das experiências mais gratificantes de toda a minha carreira." Porquê? Precisamente porque o desafio que a personagem envolve convoca e, de alguma maneira, exige capacidade de resistência ao comodismo das ideias feitas: "Estamos de tal maneira condicionados pelas abordagens tradicionais dos ideais românticos no cinema... Mas quando retiramos esses estereótipos, é como uma lufada de ar fresco.".As suas composições mais ricas, complexas e fascinantes implicam, justamente, o enfrentamento de convenções que, sendo dramáticas, são também morais. Algo do género acontece no filme que lhe valeu aquele que é, até agora, o seu único Óscar (num total de sete nomeações): O Leitor (2008), de Stephen Daldry, baseado num best-seller de Bernhard Schlink, odisseia de sobrevivência de uma mulher na Alemanha pós-Segunda Guerra Mundial. Há em O Leitor um maneirismo narrativo que impede a atriz de levar a sua performance às últimas consequências. Vale a pena, por isso, contrapor-lhe duas interpretações, sem dúvida menos conhecidas, mas de rara subtileza e intensidade. A primeira está em Pecados Íntimos (2006), de Todd Field, um verdadeiro labirinto existencial protagonizado por duas mulheres (Kate Winslet e Jennifer Connelly) que se confrontam com a fragilidade do território conjugal, num processo tendencialmente trágico. O outro exemplo é, a meu ver, um dos filmes maiores da produção americana do século XXI, infelizmente amaldiçoado por um falhanço comercial que o tornou quase invisível: Revolutionary Road (2008), adaptação do romance de Richard Yates por Sam Mendes (na altura casado com Kate Winslet)..Revolutionary Road nasceu da vontade de refazer o par de Titanic: Kate Winslet e Leonardo DiCaprio interpretam um casal a viver numa zona suburbana do Connecticut, em meados da década de 1950, numa trajetória que não deixa de nos remeter para a série Mare of Easttown. Claro que são épocas e lugares distintos e todo o enquadramento social é diferente, mas deparamos com uma idêntica pulsação dramática: há um abismo entre o destino imaginado pelas personagens e a crueza imposta pelas dores do quotidiano. Certamente não por acaso, as melhores composições de Kate Winslet estão em filmes em que o gosto pela enigmática densidade das palavras envolve qualquer coisa de subtilmente teatral. Exemplo superior dessa arte de todas as ambivalências do fator humano é O Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski, precisamente a adaptação de uma peça, da autoria da francesa Yasmina Reza. Sem esquecer Roda Gigante (2017), de Woody Allen, drama também dos anos 1950 que propõe uma revisão crítica, rara na tradição de Hollywood, do imaginário cultural ligado a Coney Island. Razões de sobra para reconhecermos em Kate Winslet a simbologia de uma outra tradição, de uma só vez artística e afetiva: ela é mais uma atriz britânica que, a par de figuras lendárias como Vivien Leigh, Elizabeth Taylor ou Julie Andrews, triunfou em Hollywood através de um talento tecido de intransigência e versatilidade. Como se prova pelo brilhantismo de Mare of Easttown, esse é um talento que persiste na idade das plataformas de streaming. dnot@dn.pt