Julián Fuks: "Resistência" é o livro mais sincero que pude escrever

Recebeu o Prémio Saramago na quarta-feira e agora repega o que disse então: "este escritor já me fez rir e já me fez chorar ao mesmo tempo, e isso é não é comum
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Onde está o Julián?_"Passou aqui agora com a Tulipa". O Folio ganhou esta nova personagem, de quatro meses, a filha do autor de Resistência que venceu este ano o Prémio Saramago. Com as marcantes barbas compridas, ele explica como esse livro o fez mergulhar na intimidade familiar e como agora se esforça por recuperar a invenção. Galardoado no Brasil com o Jabuti, o 2.º lugar no Oceanos 2016 e menção honrosa no Prémio Rio, fala do intrigante irmão adotivo que veio da Argentina com os pais. Prepara Ocupação, com a tutoria de Mia Couto, no programa Rolex Mentor and Protegé Arts Initiative.

Um prémio com o nome de Saramago é diferente dos outros?

É um autor que leio desde sempre, desde antes de me conceber como escritor. Já me fez rir e chorar ao mesmo tempo, não sei se não terá sido o único autor que me fez isso, não é fácil. Rir enquanto se lê, não é comum e ele já me fez gargalhar. Não é uma literatura de apelo emotivo, propõe-se ser muito mais, com rigor formal, qualidade técnica, uma linguagem riquíssima. Tudo isso me encanta nos livros dele, sem se tornar algo sem sabor.

Um livro premiado torna-se especial para o autor?

Dá um pouco a sensação de ter sido descoberto. Porque você escreve para poucos, ou concebendo que é para poucos. Nunca escrevi para ninguém nem para mim mesmo, mas sabia que a circulação seria restrita. Enquanto escrevi esse livro não pensava que ia ter um salto para um público muito maior. E no entanto deu-se esse salto, não só pela crítica mas também pelo público. Os prémios ampliaram esse movimento. Tenho tido com este livro a forte sensação de que a literatura é uma construção coletiva, dá-se pelo diálogo, pelo contacto com o outro, não é o escritor no seu isolamento.

Este livro mudou a sua relação com o seu irmão?

Eu tinha a proposta de, a seu tempo, dar conta de uma mudança, de como a relação se estreitou, de como soubemos elaborar melhor uma questão, e ao mesmo tempo propiciar essa transformação, aprofundar esse estreitamento de laços. E sinto que aconteceu assim, ainda que ele não tenha lido o livro.

O seu irmão não leu?

Optou por não ler, pelo menos até agora. No entanto relaciona-se muito bem com o livro, com tudo o que aconteceu, dá o livro de presente, utiliza-o para que as pessoas em volta conheçam a história dele, a nossa história. Mas se passasse pelas páginas talvez a coisa fosse intensa de mais e preferiu deixar para outro momento. Acho que tem servido para nos aproximar.

Tem muita reflexão sobre literatura, sobre a escrita. Como se coloca tão exposto num livro?

Houve um momento em que eu procurava não me colocar nos livros. Acho que o Histórias de Literatura e Cegueira (Ed. Record, 2007) é exemplo disso, de explorar fantasmas alheios e de me aproximar do outro a partir da escrita sem me expor tanto, sem explorar as minhas próprias questões. O Procura do Romance (Ed. Record, 2011) já era uma aproximação a mim mesmo, uma exploração de um auto-exílio, de um personagem parecido comigo em Buenos Aires. E Resistência aprofunda esse gesto, procura entender algo dos meus próprios sentimentos em relação a vivências familiares e a um passado que é meu, a questão do exílio, da resistência possível a um regime autoritário. É especial, em certo sentido, porque o gesto de aproximação à minha vida tornou-se mais extremo, radicalizou-se. Num dado momento, eu já não conseguia inventar, o máximo que conseguia era alterar circunstâncias, deslocar acontecimentos de um ponto para outro. Mas tudo o que eu escrevia era algo que eu podia sentir, ou uma tentativa de reflexão sobre algo que vivemos. Foi o livro mais sincero que pude escrever. Aproximei-me de autores ou projetos literários que têm essa conceção com base numa escrita sincera. Tolstoi dizia, no século XIX, que a sinceridade devia ser a virtude maior de um escritor. Ele não se referia a algo tomado literalmente, mas para mim foi isso.

A sinceridade pode não ser uma escrita confessional.

Mas a minha sinceridade foi numa certa toada confessional.

No próximo livro, que está a trabalhar com Mia Couto, distancia-se mais de si?

Parto do mesmo ponto, um narrador assemelhado a mim mesmo, uma espécie de alter ego, Sebastián, uma voz semelhante à de Resistência. Mas Ocupação exige um novo tom, uma nova linguagem. O Mia Couto incentivava-me a voltar a fabular, a inventar, encontrar personagens que não existam na minha vida, com quem eu não me tenha cruzado. O movimento é quase pendular. A ideia é que esse tom confessional esteja lá, que se crie pelo menos a sensação de que há sinceridade no ato da escrita, mas nem tudo o que for narrado vai ter ocorrido em algum passado. Mas ainda preciso de escrever bastante.

Vejo-o com a sua filha e percebo que não é um pai distante.

Estou a assumir a experiência em toda a sua intensidade, inclusive literariamente vai entrar, na fase da gestação. A Ocupação refere-se a um edifício ocupado por moradores sem teto onde o narrador fez uma incursão. Mas também trata do corpo ocupado da mulher, ocupado por outro ser, o bebé por vir. As questões de paternidade estão envolvidas. Estou totalmente entregue à paternidade, entusiasmado com isso.

A paternidade mudou-o?

Definitivamente. Quando se tem uma filha deste tamanho, algo de doméstico está sempre caminhando connosco. Sinto que perco algo da contenção e da timidez e isso faz-me muito bem.

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