Foram uma das bandas mais icónicas da música portuguesa na viragem do século e, uma década depois do último concerto, Os Belle Chase Hotel voltaram a reunir-se no início deste mês para participarem no Lux Interior, um festival dedicado à cena rock de Coimbra, no qual foram um dos cabeças-de-cartaz, lado a lado com The Legendary Tigerman, outro ilustre filho da terra. O espetáculo, que serviu também para comemorar o vigésimo aniversário do álbum Fossanova, foi logo anunciado como um regresso da banda, não só aos palcos mas também aos discos, mas afinal parece que não é bem assim. Ou melhor, talvez seja, como não confirma nem desmente o vocalista JP Simões..Afinal, os Belle Chase Hotel estão ou não de regresso?.Foi um regresso porque já há muito tempo que não tocávamos ao vivo. Mas acima de tudo deveu-se a uma circunstância, decorrente de um convite para participar no festival Lux Interior, em Coimbra. O organizador, Rui Ferreira, foi o nosso primeiro editor, manager e apoiante incondicional. Reunimo-nos, debatemos essa possibilidade e pela minha parte achei ótimo estarmos outra vez todos juntos, em palco, passados 10 anos sobre a última vez que o fizemos..Na altura falou-se também da possibilidade de gravarem um novo disco, é verdade?.O Rui é que falou da possibilidade de pegar nalguns inéditos e editá-los. Não há muitos, pelo menos gravados. Houve muita coisa que não entrou nos discos, mas entretanto também já morreu pelo caminho e merecidamente (risos). Pelo menos pela parte que me toca, que só dizia disparates nesses temas. E até fui eu a sugerir fazer algo novo. A coisa ficou de facto no ar, mas voltámos a ficar muito tempo sem falar, que é também algo muito comum nesta banda e depois aconteceu todo este equívoco. Por mim, estou numa fase em que não quero complicações, quero fazer coisas e se as pessoas estão com vontade de fazer música então vamos lá..A que acha que se deve todo este culto à volta dos Belle Chase Hotel? O concerto praticamente esgotou, com gente vinda um pouco de todo o país....Sim, a casa estava bastante bem composta, é verdade. Não sei, nunca fiz nenhuma análise do nosso público, porque a minha função sempre foi mais a de escrever e fazer música, sem pensar muito em quem a ouvia. A banda teve uma vida rápida e muito intensa e, pelo que tenho percebido, foi importante para muita gente, especialmente para quem na altura estava na faculdade, até porque praticamente tocámos em todas as Queimas das Fitas. Fizemos parte da vida de muita gente, de facto e ao longo dos anos tem sido comum encontrar pessoas que me contam episódios, alguns até bastante íntimos, com a nossa música sempre lá metida pelo meio. Pelos vistos é uma banda de boa memória para muita gente, mas não sei se isso significa que haja um culto à volta dos Belle Chase Hotel, talvez seja mais só o saudosismo associado ao tempo em que as pessoas eram todas mais jovens..E enquanto artista interessa-lhe voltar a esse tempo? É hoje muito comum ver bandas a comemorar ao vivo as mais diversas efemérides, como de certa forma vocês fizeram em Coimbra, assinalando os 20 anos do álbum Fossanova..Sinceramente nunca tive grande interesse nisso, aliás, se pudesse nunca repetia a mesma música. Sou eventualmente um músico de jazz falhado (risos). Para mim é um trabalho que está feito, nada mais. No caso do espetáculo dos Belle Chase Hotel, houve um convite, pago decentemente, a uma banda que por acaso ainda sabe tocar os temas e cujos membros estão todos vivos. O tempo já passou e todas as complicações que eventualmente existiram também, portanto, porque não juntarmo-nos outra vez?.Que complicações foram essas?.Éramos pessoas completamente diferentes umas das outras, pertencentes a tribos diferentes. Nessa altura, em cidades pequenas como Coimbra, ouvir um determinado estilo de música, associado a um modo de estar na vida, fazia-nos de facto pertencer a uma tribo e não havia muita interpenetração entre elas. O nosso maior feito foi criar uma banda em que cada pessoa vinha de um meio diferente. Cada um de nós consumia coisas diferentes uns dos outros, de música a estupefacientes, dávamo-nos com amigos diferentes, frequentávamos lugares diferentes e a banda acabou por funcionar como um ponto de encontro para todas essas tribos. Essa era a parte mais complicada de gerir, mas ao mesmo tempo também a mais engraçada, porque no final conseguíamo-nos entender, apesar das diferenças. Éramos a prova real de que era possível salvar o mundo..E acabaram mesmo por chegar ao topo, atingindo um sucesso de certa forma inesperado, concorda?.Tivemos dois anos muito intensos, em que ficámos a conhecer o que é o sucesso e isso acabou por se tornar muito complicado para todos. Foi bom, mas éramos muito novos e sentimos uma enorme pressão. Como alguém disse um dia, "Deus quando quer prejudicar alguém dá-lhe um bocadinho de sucesso". Admito que eu também não seria a pessoa mais fácil de lidar, nessa época, mas nenhum de nós o era. E passados estes anos todos, haver este convite, já com o distanciamento dessas complicações... Foi uma ótima ideia, juntarmo-nos para fazermos um concerto. Acima de tudo foi mais um concerto de Belle Chase Hotel, com a tal desculpa dos 20 anos do Fossanova. É bom colocar as coisas desta forma, para que não se transforme num acontecimento..E é para continuar, como chegou a ser anunciado?.Não sei, a sensação que fica é como a de uma reconciliação entre pessoas que tiveram uma vida complicada e portanto é preciso ir com calma, para não se cometerem os mesmos erros do passado, com muita calminha mesmo (risos). Atualmente considero que todos os membros da banda são pessoas impecáveis. Espero voltar a passar mais tempo com o Pedro Renato e o resto da malta. E depois logo veremos o que daí sai. Para já é este o ponto da situação..O que vos juntou, na altura? Apesar de pertencerem a tribos diferentes eram amigos?.Éramos amigos e conhecidos. Esta banda começou, como ideia, em 1995, num concerto que dei em Paredes de Coura com os Pop Dell Arte, com quem tocava na altura. Estava lá com dois grandes amigos meus, o Antoine Pimentel e o João Batista, com quem comentei que faltava uma banda portuguesa que nos desse realmente pica. E decidimos fazer uma. Falava-se tanto de projetos, tanto artista e tão pouca arte, que decidimos cortar com esse círculo vicioso de só mandar bocas e não fazer nada. Começámos então a tentar formar umas protobandas, disto e daquilo. Eu, por exemplo, queria fazer algo mas próximo do glam rock, algures entre o Bowie, os Roxy Music e os T. Rex, que é algo de que gosto imenso, ainda hoje, por ser rock de finíssima qualidade, bastante esclarecido enquanto chamamento da sexualidade na juventude (risos)..E quando é que encontram a tal fórmula do sucesso?.Isso só aconteceu quando encontrámos o Pedro Renato, que além de muito talentoso é uma pessoa extremamente organizada e com vontade de experimentar coisas novas e diferentes. Aí começámos a crescer, enquanto banda e, aos poucos, passámos a ter a necessidade de colocar um violino aqui, um saxofone ali e fomos chamando pessoas para estúdio, que acabaram também elas por ingressar na banda. O nosso primeiro saxofonista era um francês chamado Jerome Charles Magne, que não tocava grande coisa, mas tinha uma presença do caraças. A banda acabou por ficar gigantesca e isso também foi complicado, porque a ideia foi sempre a de termos um princípio democrático, em que recebíamos todos o mesmo, independentemente do papel que cada um tinha, como agora voltou a acontecer neste concerto. É uma ideia generosa, que nem sempre funciona, é certo, mas sequer foi esse o pomo da discórdia entre nós..O que falhou então?.O que aconteceu foi que fomos jogados para as feras. De repente éramos uma caravana de camiões TIR, com famílias de managers, road managers, sub-road managers, ajudantes e assistentes de várias espécies. O ponto alto, pelo menos para mim, foi quando percebi que tínhamos um road-manager, à entrada do palco, apenas para contar os membros da banda. Foi bom, não me estou a queixar, mas a dada altura tivemos de tomar decisões, com as quais nem todos concordavam e acabámos por nos esboroar, por não conseguirmos fazê-lo. Depois chegou uma altura em que já não tínhamos cem concertos por ano e as pessoas começaram a ter vontade de fazer outras coisas, eu inclusive..O que queria fazer na altura?.Como já disse, sou basicamente um músico de jazz e um escritor frustrado. Foi por isso que decidi fazer uma ópera, a Ópera do Falhado, criada em juntamente com o meu amigo Sérgio Costa, que conheci nos Belle Chase e desde então me tem acompanhado em diversos projetos. Era uma obra cujo nome tinha em si a capacidade de aguentar qualquer tipo de destino e me permitia fazer algo pelo meu país..Sentia essa necessidade?.Sim, porque passei toda a minha adolescência em negação, a amar tudo aquilo que não se parecesse com o meu país de origem nem com os valores da pequena sociedade onde nasci. E notava-se isso na nossa música, como se notava em muitas das bandas de Coimbra nossas contemporâneas, que estavam ali alicerçadas, elas próprias, num imaginário extraterrestre iniciado pelo Bowie e depois seguido por um sem-fim de gente. Percebi que já bastava dessa alienação, a dada altura necessária, pela necessidade de pertença a uma comunidade sem fronteiras, cuja afinidade era mais espiritual e estética, nomeadamente em relação aos nossos heróis do rock and roll, em contraposição com as nossas raízes mais rurais..Tratou-se então de necessidade de voltar à terra, literal e metaforicamente?.Sim, foi mesmo isso. Na altura andava apaixonado pela música do Kurt Weill e do Chico Buarque. Eles entraram numa tradição que já vem desde 1728, que é a Ópera do Pedinte, do John Gay, e também eu tive vontade de pertencer a esse grupo. Decidi então fazer a minha própria ópera, baseada nesse legado, mas com um problema, que tinha que ver com a minha realidade. O John viveu numa época muito complicada em termos sociais, o Weill e o Brecht na altura em que o partido nazi começou a dar os primeiros passos e o Chico em plena ditadura brasileira, mas Portugal estava então em plena expansão europeia e comecei a ser acossado por pensamentos completamente idiotas. Do género, que chatice não vivermos numa ditadura, como antigamente, porque toda aquela arte crescia e tinha uma dignidade decorrente desse confronto entre a individualidade e as pressões totalitaristas..E como resolveu isso?.Fui alicerçar a Ópera do Falhado a algo mais antigo, que tem que ver com a presença dessa força obscura, não na sociedade mas nas pessoas. Na altura estava às voltas com o livro do Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, e havia lá uma parte, em que ele falava da necessidade de "parecer bem", que acabou por funcionar como princípio para esta ópera. É uma observação que acaba por funcionar quase como um resumo da história de Portugal desde a fundação, essa obsessão de parecer bem e de agradar aos outros, da questão das virtudes públicas e dos vícios privados. Acabei por basear a ópera não numa qualquer ditadura exterior, mas antes nesse comportamento, também ele tão opressor. Ou seja, não é a ideia do falhado à americana, que nunca consegue sobressair no seu meio nem ir para a cama com a cheerleader, mas antes um falhado à portuguesa, sempre em constante desencontro entre o que é e o que parece. Trata-se de um problema psicológico tão antigo que nem com a ajuda das forças armadas ficou resolvido (risos)..E como correu?.Foi uma grande maluqueira, a ópera tinha quase seis horas e cerca de 50 pessoas no elenco. Eram para ser muitas mais, mas não tínhamos dinheiro para isso e também nesse aspeto foi uma aprendizagem, porque para ideias gongóricas só há orçamentos reduzidos, não é? Mas aprendi imenso e diverti-me à brava, ao perceber que, com um bocado de audácia, conseguimos mesmo fazer acontecer as coisas que estão na nossa cabeça..Enquanto artista acha que tem conseguido fazer isso?.Percebi que o conseguia quando intitulei um álbum de Fossanova. Foi uma espécie de lança em África, de humor e tragicomédia, que me fez rir, com outras pessoas, ao vê-la impressa em várias unidades à venda pelo país. E a ópera foi outro momento desses, mas muito mais rebuscado. Não estou propriamente numa fase da vida em que já tenha parado para observar se há, ou não, uma continuidade na minha obra. Aliás, acho sempre que ando muito mais a saltar de nenúfar em nenúfar, muitas vezes até quase ir ao fundo. Mas as coisas têm-se, de facto, tornado realidade. Não tenho é nenhuma convicção que tenha passado as melhores ideias. Acima de tudo foquei-me sempre no que era desesperadamente romântico ou irresistivelmente cómico. E neste momento estou focado em ser apenas um pouco mais preciso..Reconhece que é um artista de muitas caras na carreira, em que cada disco é diferente do outro?.Para melhor e para pior, porque às vezes fico com a sensação de que existe uma falta de sentido de unidade na minha música. Por exemplo, quando vou ver um concerto do Sérgio Godinho, sei que ele pode fazer um alinhamento do primeiro ao último disco e aquilo soa sempre a Sérgio Godinho. Se tentasse fazer uma dessas num concerto ia soar um bocadinho esquizofrénico. Na verdade já o fiz, num álbum chamado Boato, que gravei ao vivo no Teatro São Luiz, embora nesse caso o formato de voz e guitarra ou voz e piano tenha acabado, de certa forma, por unificá-lo. Mesmo assim acabou por resultar num disco um pouco bizarro, porque metade era releituras de temas de várias bandas e a outra metade era composta por originais..Se calhar, está na altura de fazer o tal disco de glam rock....Sim, talvez... Não sei se sofro de algum problema abismal de variações de humor, mas, quando me recolho para trabalhar, quem encontro lá é sempre uma pessoa um bocadinho diferente da que se dá com os outros. É alguém um pouco insonso e solitário, que eu tento contrariar, mas que acaba sempre por se exprimir melhor em canções de amor. Durante muto tempo andei a trabalhar nesse romantismo desesperado, embora sempre com um toque de ironia. O facto de me ter concentrado em canções na primeira pessoa, mesmo sem ser forçosamente sobre mim, foi a forma mais humilde que encontrei para me exprimir, porque não me sinto com autoridade nenhuma para falar sobre os outros. Durante algum tempo achei que isso era a única coisa que poderia dar, pegar nessa bizarra sensação de ter sido amaldiçoado com uma incapacidade para amar, de uma certa falência de todos os valores filosóficos aprendidos na escola e na vida, fazendo da música o meu trabalho. Sentia-me assim um ser meio vampiresco, que estava sempre a um segundo intransponível da vida e da realidade dos sentimentos. Hoje vejo apenas isso como um período muito engraçado....Em que a música funcionou como uma prisão ou como um escape?.Funcionava acima de tudo como um exorcismo. Eu ficava alegre quando conseguia fazer uma canção estupidamente triste. Andei tristemente feliz durante muitos anos (risos)..Entretanto, há dois anos, fez um disco em inglês, Bloom, que alterou isso tudo?.Eu sempre cantei em inglês, até nos Belle Chase Hotel, mas nessa altura houve muita gente, inclusive alguns amigos meus, que estranharam e me vieram perguntar o porquê dessa decisão. Para mim cantar em inglês sempre foi muito natural. O meu universo na adolescência era todo cantado em inglês, devido a essa sensação de alteridade, de pertencer a outro lugar, de que já falámos. Mas que obrigação têm hoje as pessoas de saber que comecei a cantar em inglês? Sempre me assumi, isso sim, como um cronista meio melancólico e magoado, mas a dada altura isso levou-me a ser visto como uma espécie de cantor de intervenção que nunca fui nem quis ser. O Bloom fez-me imensamente bem e é algo que quero continuar, porque é um disco do qual me orgulho imenso..A versão que em tempos fez do tema Inquietação, de José Mário Branco, se calhar também ajudou a formar essa imagem de cantor de intervenção?.Fi-la porque adoro essa canção e porque achei que o conseguia. Foi um daqueles momentos de tentar devolver à música tudo aquilo que ela me tem dado. Talvez tenha tido essa atitude mais interventiva noutros momentos da minha carreira, mas sempre fiquei um pouco aquém do que poderia ter dado nesse aspeto. O mais próximo que estive disso foi numa canção do disco Roma, chamada Vai para a Culpa Que Te Pariu, sobre a terapia de choque imposta ao povo pela crise liberal. De facto, e esta é a realidade, não sentia que soubesse assim tanto sobre o estado do mundo para cantar sobre ele. Por isso preferi sempre usar-me como rato de laboratório e escrever sobre mim..Estar aqui, a viver no campo, perto do mar, vai influenciar os trabalhos futuros?.Não sei, aterrámos aqui há cerca de um ano e o bom disto é que não há vazios, há sempre algo a fazer. Isso é muito terapêutico, para quem, como eu, passou muito tempo a perseguir fantasmas no sótão. Respondendo a essa pergunta mesmo de coração aberto, o que me apetece é mesmo não fazer nada. Quando voltar acho que vou assumir esse meu lado mais rock and roll. Finalmente, estou num período da minha vida em que não tenho de estar a perseguir o trabalho para existir. Sou uma pessoa multipolar, nem é bipolar, que pensa muito e passava o tempo a viajar na maionese. Houve uma altura em que a minha única ligação com o real era editar algo. Hoje isso desapareceu. Aqui percebi, finalmente, como dizia o índio do Dead Man, que não é por andar a esbracejar que vou conseguir mudar o curso das nuvens.