Duas vezes segundo classificado na corrida à presidência do Brasil - perdeu em 2002 para Lula da Silva e em 2010 para Dilma Rousseff em disputadas segundas voltas -, o hoje senador José Serra, do PSDB, partido de centro-direita, é um dos políticos mais experientes do país..E dos mais habilitados a comentar a crise do coronavírus: foi ministro da Saúde, no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, prefeito da cidade, São Paulo, e governador do estado, novamente São Paulo, mais atingidos pela pandemia, e ainda ministro dos Negócios Estrangeiros, entre outros cargos..Para José Serra Chirico, nascido a 19 de março de 1942 em São Paulo, filho de emigrantes italianos, o presidente da República Jair Bolsonaro conduz a crise "criando novas crises" por culpa de um "comportamento errático", que se traduz, também, "em danos na imagem internacional do Brasil". No entanto, acha que seria "um equívoco" torcer pela renúncia ou pelo impeachment do presidente nesta fase..Em conversa recente com o DN, o advogado Miguel Reale Júnior, um dos subscritores do impeachment de Dilma Rousseff, defendeu a necessidade de renúncia ou de impeachment do atual presidente. Como vê a questão neste momento? Embora a vontade de termos no lugar de Bolsonaro alguém mais centrado, mais equilibrado para coordenar e gerir a crise, que entenda que é presidente de todos os brasileiros e não apenas do grupo que o apoia, considero que seria bastante traumático torcermos pela renúncia ou o impeachment do presidente. Definitivamente, acho que é um grande equívoco considerarmos essas opções neste momento..Como avalia a condução desta crise pelo presidente Jair Bolsonaro? Na verdade o presidente Bolsonaro tem conduzido a crise do coronavírus criando novas crises. Tem insistentemente mantido um comportamento errático, confundindo a população, contradizendo as orientações técnicas das autoridades sanitárias nacionais e internacionais e minimizando os efeitos e o potencial da contaminação do vírus. Como se não bastasse, vocês devem estar acompanhando o braço-de-ferro com o ministro da Saúde. Na segunda-feira, o Brasil passou o dia inteiro em suspenso, com a possibilidade de demissão do ministro [Luiz Henrique] Mandetta, que é quem tem, de facto, conduzido o enfrentamento da pandemia e dado um norte para que os governadores se posicionem e tomem medidas de isolamento em seus estados. Eu sintetizaria a postura do presidente Bolsonaro como irresponsável e inadequada diante da crise.."A hora é de gastar, gastar, gastar".O que é prioritário no momento, dos pontos de vista político, económico, logístico? Do ponto de vista político deve haver união. Autoridades do executivo, do legislativo e do judiciário, nas diversas esferas de governo, devem unir-se para dar uma resposta satisfatória à população. As disputas ideológicas e de poder devem ser deixadas de lado, por enquanto. Do ponto de vista económico, a opção é uma política orçamental agressiva, que vai levar, inexoravelmente, ao aumento da dívida pública. Qual o tamanho da dívida, quando e como pagar é uma resposta que só pode ser dada depois que tudo isso passar. Nesse sentido, foi fundamental a aprovação do decreto legislativo autorizando o governo federal a gastar o que for necessário para suportar o sistema de saúde e garantir algum alento financeiro para a população mais vulnerável financeiramente, principalmente trabalhadores informais e autónomos, bem como micro empreendedores que viram as suas receitas reduzirem-se bruscamente da noite para o dia, em muitos casos a zero. A aprovação do decreto permite flexibilizar o orçamento da União de forma a que se adote a única política económica necessária no momento: gastar, gastar e gastar..E a questão logística? Do lado logístico, a hora é de fortalecer o Sistema Único de Saúde [SUS], que foi implementado durante a minha gestão no Ministério da Saúde. Para tanto, apresentei, e o Senado já aprovou, projeto de reforço orçamental de dois mil milhões de reais [cerca de 400 milhões de euros], sem condicionantes, às Santas Casas, que constituem uma rede de hospitais em todo o Brasil e respondem por 50% do número de atendimentos do SUS. Além disso, temos de buscar todas as alternativas para que não faltem profissionais de saúde, equipamentos de proteção e leitos para todos. Isso só será possível se o país adotar práticas rigorosas de isolamento, de forma a evitar a saturação do sistema de saúde.."Nem sida nem dengue se comparam".Já esteve no lugar do ministro Luiz Henrique Mandetta. Criou um elogiado programa de combate à sida e enfrentou a dengue. Esses episódios têm alguma comparação com o novo coronavírus? O combate à sida e o enfrentamento à dengue foram episódios que exigiram uma reviravolta em todo o sistema de saúde do Brasil. No caso da sida, enfrentámos o lobby e o interesse comercial da indústria farmacêutica internacional. Não nos limitámos apenas à prevenção da transmissão da doença, fomos além, fomos em busca de um tratamento. Nessa busca surgiram os medicamentos genéricos, que foram fundamentais para o tratamento da sida, na queda do número de mortes, na cura de muitos, o que provocou mudança radical no mercado de medicamentos no Brasil. No caso da dengue, travámos outra batalha com a ajuda do exército. Foram realizadas task forces em todos os locais onde o número de casos era mais expressivo, houve forte campanha educacional, para que a população fizesse a sua parte no controlo da disseminação do mosquito. Diria que foram duas duras guerras que tive de enfrentar, mas nada se compara com o que estamos presenciando no caso do novo coronavírus. Com proporções mundiais, implicou a mudança de comportamento de todos nós. De repente, nações ricas e pobres viram-se dominadas por um inimigo desconhecido e invisível, com consequências nefastas e sem controlo, tanto do ponto de vista da saúde quanto económico..E esteve no lugar de João Dória [também do PSDB]. Acha que o governador de São Paulo - e a generalidade dos restantes governadores dos estados do Brasil - está a lidar com a crise da forma mais responsável? Sim. Considero que o governador João Dória e a maioria dos governadores do Brasil estão tratando a crise de forma bastante rigorosa e responsável. Dória acaba de estender a quarentena horizontal até ao dia 22. As medidas que têm sido tomadas pelos governadores têm sido fundamentais para que os números de contaminados e de mortes sejam menores do que o previsto no início da pandemia no Brasil.."Má imagem do Brasil é natural".Internacionalmente, a imagem do Brasil no combate à pandemia vem sendo destacada, pela negativa, por causa das posições do presidente Bolsonaro. Tendo sido ministro dos Negócios Estrangeiros no governo anterior, acredita que isso possa causar danos ao país? Infelizmente tenho de concordar com o olhar que o mundo tem do Brasil no caso da pandemia. Como já disse anteriormente, o presidente Bolsonaro não se tem comportado de maneira adequada e que tranquilize os brasileiros neste momento e tem minimizado os efeitos da doença além do recomendável. Com o seu comportamento errático, é natural que o mundo forme uma imagem negativa do Brasil. Espero que o mundo entenda que o comportamento do presidente não reflete o que é o Brasil ou o brasileiro, nem mesmo reflete o seu governo, que conta com ministros bastante dedicados ao enfrentamento da crise. Mas é muito difícil que a nossa imagem não saia arranhada internacionalmente e que parceiros importantes não mudem a relação connosco..Sendo parte do legislativo, como avalia os ataques de Bolsonaro ao Congresso (e ao poder judicial)? Completamente inadequados. Agora seria a hora da união e não de divisão ou disputas políticas e de poder. É hora de baixarmos a guarda e ouvirmos mais os cientistas e voltarmos todos os nossos esforços para encontrar soluções para a sociedade brasileira..Presumo que se tenha sentido sem alternativas na segunda volta das eleições de 2018. A esta distância, acha que teria sido mais ou menos danoso para o país uma eventual vitória de Fernando Haddad, do PT, tradicional antagonista do PSDB? Difícil dizer. Não sei qual seria o comportamento de Fernando Haddad diante dessa crise inimaginável que atingiu o mundo. Lembremos que assim como hoje Bolsonaro classifica o coronavírus como uma simples "gripezinha" ou "resfriadinho", o PT denominou de "marolinha" [onda pequena] a crise económica de 2008, que todos chamavam de tsunami..Tem fortes raízes italianas, como tantos outros paulistanos. Como se sente ao ver que Itália é o país mais atingido pela doença até agora? Vejo com muito pesar, sem deixar de pensar nos meus pais, que se estivessem vivos estariam muito tristes com todo o sofrimento pelo qual estão passando os seus compatriotas.