José Pedro Gomes volta à Treta, mas com outro António
Zezé continua com as suas camisas floridas e o bigode pintado de preto que contrasta com os cabelos cada vez mais brancos na cabeça. Continua a não dominar o inglês e a não perceber muitas das modernices dos dias de hoje. Continua conservador e chico-esperto, politicamente incorreto e (espera-se) muito divertido. Mas a seu lado já não está Tóni. Em vez dele está o seu filho, Júnior, interpretado por António Machado.
O Filho da Treta é o espetáculo com que José Pedro Gomes regressa aos palcos sete meses depois de ter estado gravemente doente e em coma durante mais de um mês. O ator finge que já se esqueceu desse momento e, como é seu hábito, aproveita para brincar com a situação: "Mais um motivo para as pessoas virem ver este espetáculo. Venham ver como eu estou vivo, aproveitem antes que me dê outra coisinha má." Este é também o regresso do ator a Zezé, a personagem que interpretou tantas vezes ao lado de António Feio (que fazia Tóni), desaparecido em 2010.
Zezé e Tóni à conversa
Foi em 1997 que tudo começou. Depois da experiência de O Que Diz Molero, a partir do texto de Dinis Machado e já com a equipa das Produções Fictícias, os atores José Pedro Gomes e António Feio preparavam-se para estrear o espetáculo Conversa da Treta, no Auditório Carlos Paredes, em Lisboa, e tinham dúvidas se o espetáculo iria resultar. "Era arriscado, não tinha nada a ver com o nosso trabalho anterior, aquilo era um saltar fora de pé", recorda Zé Pedro Gomes. "Não havia ninguém a fazer aquele tipo de espetáculo. Eram duas personagens em palco a conversarem sobre tudo e a fazerem humor. À medida que íamos ensaiando íamos chamando pessoas para assistirem a bocados do espetáculo, para nos darem a sua opinião."
Na noite de estreia a Conversa da Treta já tinha mais meia hora do que no ensaio geral. Quando o (então jovem) ator António Machado se sentou na plateia do auditório da junta de freguesia de Benfica, com 116 lugares todos ocupados, o espetáculo durava três horas mas nem por isso o público se aborrecia. "Lembro-me que havia muito improviso e era um fartar de rir. E via-se muito bem a cumplicidade entre eles." José Pedro Gomes conta que "regularmente" os atores cortavam bocados do texto, "pois as pessoas ficavam exaustas, de tanto rir". E eles também.
Conflito de gerações
Zezé e Tóni continuaram a aparecer, regularmente, nos palcos e nos ecrãs (ver caixa). A primeira vez que Sónia Aragão trabalhou com António Feio e José Pedro Gomes foi em A Treta Continua. "Vim com o objetivo de pontar e ajudá-los no texto a acabei a opinar, por iniciativa deles, porque era a pessoa que estava de fora", lembra. Agora, é ela a encenadora deste Filho da Treta. "É sempre complicado fazer uma sequela", diz. "Há espectadores que já viram os espetáculos anteriores e vêm à procura daquelas piadas, e há os espectadores novos, que só conhecem o mito."
Uma coisa ficou desde logo assente desde o início dos trabalhos: não haveria qualquer imitação de António Feio. Agora, no palco, está outro António e outra personagem: Júnior: "Eu não sou o mesmo tipo de cromo que era o Tóni", garante Machado. "Há uma parecença mas é uma geração diferente, uma maneira de falar diferente, é um cromo mais moderno. É um tipo que foi à Wikipédia ler as coisas, tem muito de reality show."Rui Cardoso Martins, que escreveu o texto do espetáculo com Filipe Homem Fonseca, chama-lhe "um hipster popularucho". Júnior tem um telemóvel topo de gama e fala inglês mas continua a ser um pintarolas.
O conflito de gerações é o principal motor deste espetáculo, com o sempre conservador Zezé a ficar ainda mais espantado com as novidades de que lhe fala Júnior: as refeições com soja em vez de carne, as startups e o crowdfunding, as novas tecnologias. Em termos temáticos, há espaço para tudo nesta conversa. Da crise ao desemprego, da moda do running e do cycling à política nacional e internacional, dos refugiados às mulheres. Zezé e Júnior falam de tudo, como toda a gente, e dizem muitos disparates, como muita gente, mas as coisas acabam todas por fazer algum sentido e é isso que os torna tão reconhecíveis, reconhece Rui Cardoso Martins: "Os temas são a atualidade e a intemporalidade filosófica da vida, expressa desta forma totalmente incongruente e popular mas, às vezes, bastante certeira". Afinal, se a vida real não tivesse a sua dose de treta, nada disto faria sentido.