Jornalismo distinguido por Oslo na luta contra o autoritarismo
A lista era composta por nada menos do que 329 candidatos, entre organizações e indivíduos, das mais variadas proveniências e ocupações e no final de contas o Comité do Nobel quis premiar a liberdade de imprensa e de expressão num ambiente global de crescente autoritarismo e de erosão dos direitos democráticos, como concluem relatórios da UNESCO e do Conselho da Europa.
Organizações como Repórteres sem Fronteiras, o Comité de Proteção de Jornalistas ou o International Fact-Checking estavam nomeados, mas o júri contrariou a velha máxima de que os jornalistas não são notícia e entregou o Prémio Nobel da Paz à filipina Maria Ressa e ao russo Dmitry Muratov pela "sua corajosa luta pela liberdade de expressão, a qual é um pré-requisito para a democracia e a paz duradoura".
Ambos foram apanhados de surpresa pela chamada realizada pelo secretário do Comité do Nobel norueguês, Olav Njolstad. Muratov disse ter ignorado vários telefonemas de números não identificados enquanto discutia com um jornalista, tendo sido avisado pela secretária da redação momentos antes do anúncio oficial. Ressa encontrava-se a meio de um painel de discussão sobre o documentário A Thousand Cuts, centrado no seu trabalho, mas atendeu o telefonema e recebeu a notícia, logo aplaudida pelos restantes elementos da tertúlia. "Passámos por tanto nestes cinco anos e meio e agora isto. Estes altos e baixos dão comigo em doida", reagiu.
Maria Ressa, de 58 anos, natural das Filipinas, cresceu nos Estados Unidos, onde se formou. É jornalista há 35 anos, tendo chefiado as delegações da CNN em Manila e em Jacarta, mas foi a partir de 2012 que o seu trabalho tomou um novo rumo quando fundou com outros o site Rappler. Este veio a revelar-se um baluarte da liberdade de imprensa num país liderado desde 2016 por Rodrigo Duterte e a sua controversa "guerra às drogas".
O Rappler, que já se distinguia pelo ativismo social, começou a enviar repórteres aos bairros onde ocorriam mortes relacionadas com as drogas. A investigação concluía muitas vezes que as versões policiais dos homicídios não correspondiam aos relatos das testemunhas: algumas das vítimas pareciam ser inocentes que a polícia tinha incriminado, plantando drogas e armas para parecerem suspeitos. À contagem oficial de 2167 mortos anunciada pela presidência de Duterte no final de 2016 na guerra às drogas, o Rappler acrescentou mais 4 mil mortes que o governo tinha listado como "homicídios inexplicáveis". Entretanto, até hoje, o número de assassínios extrajudiciais pode ascender a 30 mil, segundo organizações de defesa dos direitos humanos.
Noutra frente, os jornalistas do Rappler desmontaram uma campanha dos próximos de Duterte no Facebook. Centenas de páginas e contas de desinformação provinham da mesma fonte, Nic Gabunada, o então responsável pelas redes sociais de Duterte. A empresa de Mark Zuckerberg acabou por fechar as referidas páginas e contas por "comportamento falso coordenado".
Rodrigo Duterte, além de dizer que o Rappler é um "órgão noticioso falso" patrocinado pela agência de espionagem norte-americana (CIA), fez uma ameaça pouco velada à integridade física dos jornalistas, ao dizer que "não estão livres de homicídio".
Em resultado, além de ameaças, a administradora do site noticioso passou a ser visita corrente dos tribunais, acusada dos mais diversos crimes, de fraude a evasão fiscal, e por receber dinheiro da CIA, tendo sete processos judiciais pendentes.
Ressa acabou por ser condenada em 2020, tal como o colega Reynaldo Santos, a seis anos de prisão por calúnia, tendo recorrido da decisão. Da sua equipa de defesa faz parte a ativista dos direitos humanos Amal Clooney, que considerou a condenação "uma afronta ao Estado de direito, um duro aviso para a imprensa e um golpe para a democracia nas Filipinas". As autoridades negaram os seus últimos quatro pedidos para viajar. "Tenho visto os meus direitos a desaparecerem muito lentamente", lamenta a pessoa do ano de 2018 para a Time (em conjunto com o assassinado Jamal Kashoggi, os birmaneses Wa Lone e Kyaw Soe Oo e o jornal Capital Gazette, no qual decorreu um ataque que matou cinco funcionários).
Se o anúncio do Prémio Nobel coincide com a data para a entrega de candidaturas das presidenciais nas Filipinas, às quais Duterte não pode recandidatar-se, acontece um dia depois do 15.º aniversário do assassínio da jornalista Anna Politkovskaya, que escrevia sobre a guerra na Chechénia no Novaya Gazeta.
Dmitry Muratov, de 59 anos, foi um dos fundadores, em 1993, desse jornal independente, e é o diretor desde 1995. Além de Politkosvaya, outros cinco jornalistas foram assassinados. "Sou um vencedor indevido. Este é o prémio dos meus camaradas mortos, daqueles que deram a vida por pessoas que lutaram contra a ditadura, que defenderam a liberdade de expressão." "Vamos usar este prémio para lutar pelo jornalismo russo, que estão a tentar reprimir", disse Muratov. Adiantou ainda que irá doar parte do dinheiro do prémio para a luta contra a atrofia muscular espinal.
"Apesar das mortes e ameaças, o diretor Muratov recusou-se a abandonar a linha editorial independente do jornal", escreveu o Comité do Nobel. "Tem defendido consistentemente o direito dos jornalistas a escreverem o que quiserem sobre o que quiserem, desde que respeitem os padrões profissionais e éticos do jornalismo."
Tendo dedicado o prémio a todos os jornalistas e em especial aos que morreram em serviço, reconheceu que teria dado o prémio a o opositor de Vladimir Putin Alexei Navalny. "Merecia-o pela sua coragem. Mas penso que ele tem tudo à sua frente", disse sobre o ativista preso. Um dos próximos de Navalny não escondeu o mal-estar do prémio, com "discursos pretensiosos e hipócritas sobre liberdade" ao invés de se "proteger [com o Prémio] uma pessoa que sobreviveu a uma tentativa de homicídio e que está refém dos seus algozes", comentou Ruslan Shavedinnov. O porta-voz do Kremlin felicitou Muratov, um homem "talentoso e corajoso", segundo Dmitry Peskov.
O Prémio Nobel da Paz havia laureado desde 1901 seis jornalistas. Logo no segundo ano, o suíço Élie Ducommun, ativista pela paz; em 1907 o italiano Ernesto Teodoro Moneta, cujos livros sobre a guerra no século XIX concluíam que o militarismo nada resolveu; quatro anos depois, o austríaco Alfred Hermann Fried por advogar pela ordem internacional em oposição à "anarquia internacional" da época, principal causa da guerra; em 1933, o inglês Norman Angell por denunciar a guerra no livro A Grande Ilusão; dois anos depois foi a vez do alemão Carl von Ossietzky, por ter denunciado o rearmamento alemão, ao arrepio do Tratado de Versalhes, o que lhe valeu a prisão, e por ser um "símbolo de resistência democrática ante Hitler"; por fim, em 2011, a iemenita Tawakkol Karman, pela sua luta não violenta pelos direitos das mulheres.