Jordi Llorella."A parte erótica da fotografia perdeu-se"
Anda pela estação de Santa Apolónia, em Lisboa, com uma mala de cartão em cada mão, à procura do melhor enquadramento e da melhor luz. As bagagens de Jordi Llorella são o seu instrumento de trabalho e com elas tem viajado por todo o país, não de comboio, mas de autocaravana. "Estou a fazer um percurso por todo o país, com estas malas antigas que eu converti em máquinas fotográficas, câmeras estenopeicas ["máquinas fotográficas" sem lente] muito simples", começa por contar.
Jordi anda pelas estações e apeadeiros do país, dos mais movimentados aos abandonados, com o objetivo de fazer um futuro inventário fotográfico destes locais. "Com estas malas vou andando por todo o país a fotografar todas as estações e apeadeiros que posso", frisa. "Há muitas. Estamos a falar de milhares de estações e apeadeiros por todo o país", descreve. O catalão fotografa apenas com as malas de cartão, que neste projeto artístico são mais do que uma câmara escura.
"São uma homenagem à emigração portuguesa", aquelas pessoas que "saíram do país através destas estações e apeadeiros nos anos 50, 60, 70 que depois chegavam aqui à estação de Santa Apolónia", que durante muitas décadas foi a única a ligar Portugal ao estrangeiro.
O projeto é uma encomenda artística da Sonae Capital Hotelaria a propósito da abertura de um hotel na estação de Santa Apolónia, com o foco na ligação simbólica com a ferrovia. "Pediram-me um projeto ligado não apenas aos caminhos de ferro, mas também à parte humana", a todos os que viajavam e continuam a viajar de comboio.
"E pensamos que homenagear, dignificar de alguma forma essa emigração que saía com essas malas de cartão podia ser giro, através de uma visão artística", detalha.
O artista que tira fotografias mas "não é fotógrafo"
A arte de Jordi LLorella é baseada na fotografia estenopeica - uma forma rudimentar de fotografar - mas o artista não se considera fotógrafo.
"Não digo que sou fotógrafo porque eu não sei utilizar as máquinas de fotografar comuns", ou "modernas", com objetivas, obturadores e diafragmas e tudo o resto. "Na verdade, não sou fotógrafo," frisa. Jordi considera que descrever-se como "fotógrafo estenopeico seria um pouco estranho" e diz sempre que "é artista".
As malas de cartão que usa para tirar fotografias são câmaras escuras que captam as imagens da mesma forma que o olho humano. Através de "um processo muito simples", que Jordi convida todos os portugueses a experimentar fazer em casa, com os miúdos, "agora que estamos em confinamento".
"Num quarto que tenha janela, primeiro fechar tudo de forma a que não entre luz nenhuma. Depois, é preciso fazer um buraquinho muito pequenino no que utilizaram para tapar a janela. A seguir é só ver como o exterior se projeta no interior - através de uma imagem invertida", pormenoriza. "É basicamente o que acontece no olho que tem um "buraquinho", a retina, por onde entra a luz. Esse é o processo básico da fotografia", acrescenta.
Este processo é conhecido desde a Grécia Antiga e surge referenciado numa das obras mais conhecidas da Antiguidade Clássica. "No livro A República já se fala de uma caverna onde Platão entrou e, no interior, viu umas imagens projetadas. Esse é o efeito estenopeico", afirma Jordi.
O efeito estenopeico, obtido quando a luz "entra" através de uma pequena abertura, produz fotografias a preto e branco que exigem muita preparação e paciência.
"Demoro meia hora a tirar uma fotografia. Mas posso demorar mais, se for um sítio muito escuro. Por exemplo, no interior da estação de São Bento [no Porto] demorei quase uma hora e meia", descreve. "Preciso de tanto tempo, que num dia inteiro acabo por tirar apenas 10 ou 15 fotografias", explica.
Jordi destaca que "é tudo feito com muito vagar", ao contrário do que estamos habituados a fazer quando tiramos uma fotografia com o telemóvel.
O processo do catalão é lento e demorado mas "é também um processo de reivindicação do ato fotográfico". Os últimos dez anos foram "a década em que mais tiramos fotografias" e "toda a gente tem uma máquina fotográfica, todos podem ser fotógrafos, mas todos esqueceram o ato fotográfico", lamenta.
"O processo que existe antes do click é o mais importante - olhar, ver a luz, preparar as máquinas fotográficas", considera Jordi. "Aquilo que eu chamo a parte erótica da fotografia perdeu-se para um ato mais imediato e rápido que é tirar uma fotografia, guardá-la num telemóvel e, se calhar, apagá-la no dia seguinte. O trabalho que faço é o contrário disso."
Jordi fotografa com câmaras estenopeicas há mais de duas décadas e antes de apontar a mala nas estações e apeadeiros de Portugal viajou um pouco por todo o mundo. Destinos diferentes onde enfrentou muitas vezes o mesmo problema: não poder mostrar o que leva nas malas.
"Há 23 anos que uso esta técnica e já tenho uma longa lista de peripécias que me foram acontecendo." Um dos pedidos recorrentes que lhe fazem, seja em aeroportos ou estações de comboios, é para abrir as malas. Normalmente, os problemas surgem quando tenta explicar que não o pode fazer.
"Querem que abra as malas e as malas não se podem abrir, porque têm material fotossensível. Então levo um aviso, um letreiro que diz "NO BOMB" - não é uma bomba, é uma máquina fotográfica, não dá para abrir", recorda Jordi a sorrir.
E, em Portugal, teve o mesmo problema? "Aqui é mais porque as pessoas reconhecem as malas de cartão", que fazem parte da memória coletiva de muitos portugueses, e perguntam ao catalão porque é que (ainda) as usa. Ainda não lhe pediram para abrir a mala numa estação ferroviária porque se têm deslocado pelo país de autocaravana, mas confessa que os comboios são um dos meios de transporte que prefere.
"Já viajei muito e, a partir de certa altura, passei a ter medo de andar de avião e decidi que ia passar a viajar de comboio como o presidente da Coreia do Norte", declara. "Gosto de me sentar para desfrutar de uma refeição a bordo de um comboio que me leve para longe e já não ando de avião."
Há oito anos que Jordi Llorella deixou de voar e, se tiver de ir à América no futuro, prefere fazê-lo de barco. Nada de surpreendente para alguém que gosta de trabalhar de forma demorada e com tempo. Quando acabar este projeto, vai até à Mongólia, e irá fazê-lo de comboio. "São dez dias", diz, despreocupado.
Não tão devagar e a bom ritmo, Jordi Llorella já percorreu metade do país. Fotografou nas linhas do Douro, do Tua, do Tâmega, do Minho, do Oeste, da Beira Alta, da Beira Baixa e quando sair de Lisboa, segue para o ramal de Cáceres, "que é um ramal antigo, abandonado e fantástico. "Antes de regressar a Espanha ainda irá fotografar também estações e apeadeiros nas linhas do Alto Alentejo, Baixo Alentejo e Algarve.
Se tivesse que escolher um, de todos os apeadeiros e estações que já fotografou, qual escolhia?
Jordi ri-se porque lhe fazem sempre a mesma pergunta por onde tem passado e não quer dar uma resposta que fira suscetibilidades regionais ou afetivas. Mas lá vai dizendo que gostou muito dos "pequenos apeadeiros que existem nas margens do Rio Douro - uns apeadeiros pequeninos aos quais se chega a pé porque não são acessíveis por uma estrada" e "mesmo em frente ao caminho de ferro e ao rio".
"Aí encontrei autênticas joias", diz, deixando escapar que considera "o vale do Douro maravilhoso."
Algumas das fotografias de Jordi Llorella poderão ser vistas na estação de Santa Apolónia, em Lisboa, numa exposição a inaugurar lá mais para o final do ano.