João Paulo Batalha. "Continuamos vulneráveis à promiscuidade política"

Ex-presidente da associação Transparência e Integridade diz que era essencial separar a decisão política dos processos técnicos para atribuição de fundos europeus, mas "o que vemos não é isso". Tribunal de Contas "não tem meios para olhar para tudo".
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Portugal criou os mecanismos necessários para acompanhar e fiscalizar a atribuição e execução dos fundos europeus?

Não. Nós já temos um mau histórico com os fundos europeus, com as fraudes que houve nos anos 1980, os fundos agrícolas para comprar maquinaria que depois eram Range Rovers. Era aquela tipologia típica de fraude: ou alguém recebe um subsídio e usa-o para um fim diverso; ou, aquilo que entretanto pusemos na legislação como fraude na obtenção de subsídio, o apoio ganho de forma fraudulenta, com informação errada, estruturas fantasma. Nesta tipologia de abusos houve melhorias desde os anos 1980. Mas continua a haver um risco muito grande de outro tipo de fraude, a forma como as entidades nacionais fazem a gestão dos fundos. Aí continuamos a ver imensos casos de compadrios, de proximidade política entre quem financia e quem é financiado, continuamos a ser brutalmente vulneráveis a este tipo de promiscuidades. Outro problema, que também é político, é a alocação dos fundos europeus, a definição de prioridades que não são necessariamente as melhores em termos de interesse público, que podem ser definidas especificamente para beneficiar determinadas empresas ou grupos económicos. A captura política dos fundos é um risco enorme. Aliás, vimos como o próprio primeiro-ministro e os candidatos do PS usaram o Programa de Recuperação e Resiliência [PRR], e a sua proximidade com os decisores do PRR, como um ativo político para a campanha eleitoral.

O que é que se pode fazer nesses casos? A definição de prioridades é uma escolha política.

Tem de haver discussão pública, com o parlamento, com a sociedade civil. Isso fez-se da maneira que se fez, não foi propriamente muito aberta, até porque é uma discussão que começa enquadrada pelo plano estratégico que o governo pediu a uma só pessoa, ao engenheiro Costa Silva, enquanto outros países fizeram grupos alargados, com pessoas de várias áreas da vida pública. Mas o mais importante seria que, depois de definida a estratégia, houvesse uma separação clara entre quem atribui os fundos, quem gere os concursos e atribui as verbas, e o poder político propriamente dito.

E não houve?

O que nós vemos não é isso. Veja-se as comissões de coordenação e desenvolvimento regional [CCDR], que têm um papel importante nisto. Foram reconfiguradas, mas não houve propriamente um reforço da democraticidade. Por aquilo que vimos foram eleições cozinhadas, com candidatos únicos, repartidos entre o PS e o PSD: isto é uma apropriação política dos organismos de coordenação regional que não é nada útil. Quanto à estrutura de governança dos fundos do PRR, é criada uma estrutura de missão, chamada Recuperar Portugal, que é de nomeação política, e uma comissão de acompanhamento que tem funções de supervisão, também de nomeação política. E que inclui praticamente todos os interessados, direta ou indiretamente, nos fundos: universidades, organizações empresariais, etc. O risco é que não seja tanto uma comissão de acompanhamento independente e externa, mas uma espécie de câmara corporativa que negoceia entre si quem fica com que fatia do bolo.

Não é uma efetiva estrutura de fiscalização?

O mais provável é que não tenha nenhum resultado em termos de garantia da boa gestão dos fundos. Não é pelas pessoas que lá estarão, que nem sei quem são, mas pelo formato: é grande o risco de ser um mecanismo de conciliação dos vários interesses particulares, em vez de ser um organismo de defesa intransigente do interesse público. Se somarmos a isto os mecanismos de contratação pública, que foram revistos de propósito para facilitar e agilizar os contratos de gestão pública relacionados com a pandemia e com os fundos europeus, vemos um aligeiramento enorme dos mecanismos de contratação pública, com toda a fiscalização a ser empurrada para o Tribunal de Contas [TC].

Mas o Tribunal de Contas ganha poderes. Não é uma garantia?

Não, porque a regra diz que todos os contratos que tenham que ver com os fundos europeus, seja de que montante forem, vão ser enviados para o Tribunal de Contas. E o TC não tem meios suficientes para andar a olhar para tudo, dificilmente conseguirá fazer um escrutínio rigoroso. Cria-se uma ilusão de controlo, em que se remete tudo para um funil, que é o TC, que não tem capacidade para escoar aquilo tudo.

O Portal da Transparência é um contributo para uma maior fiscalização?

Tem alguma informação útil sobre os processos em curso e isso é bom, permite aos cidadãos verem que projetos é que estão a ser financiados, qual é o dinheiro atribuído a cada um deles e a que é que se destinam. Isso é bom, mas falta imensa coisa. Faltam descrições mais detalhadas dos projetos, relatórios de acompanhamento da execução, como é que estão no terreno, se estão dentro ou fora do prazo, quem eram os outros candidatos, como é que foram feitas as avaliações. Se o que nós queremos é escrutinar os processos, o portal não é minimamente suficiente.

Na sua perspetiva o que é que devia ser feito?

O fundamental era separar com muita clareza o processo político de definição de prioridades da tomada de decisão sobre quem são os beneficiários. As estruturas de gestão operacional tinham de estar completamente despolitizadas: estruturas capacitadas da administração pública, independentes, sem nomeações políticas, com jurados conhecidos, incluindo especialistas internacionais, para garantir independência e distanciamento na avaliação. E, depois, garantir que se faz uma articulação eficaz com o Tribunal de Contas, com os organismos de auditoria da União Europeia. Mas o fundamental era separar o processo político dos processos técnicos e administrativos.

Há aqui a pressão do tempo na execução dos fundos. É um fator acrescido de risco?

Sim e aí o problema é europeu. Do meu ponto de vista a Comissão Europeia comete um erro grave ao limitar a disponibilidade dos fundos a um quadro temporal apressado. Isto cria, como estamos a ver até no discurso político, um sentido de urgência em gastar, cria-se um incentivo para gastar seja no que for, de qualquer maneira.

susete.francisco@dn.pt

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