João Oliveira: "Não tenho características para ser líder do PCP"
Tem na memória a primeira intervenção que fez do Parlamento?
Lembro-me sobretudo do nervosismo. A primeira intervenção foi uma coisa tramada, apesar de ser uma coisa das minhas áreas e estar mais à vontade, mas era uma coisa que tinha a ver com uma proposta de lei do governo de maioria absoluta de José Sócrates a propósito dos agentes de execução e do processo executivo. Apesar de ser algo em relação ao qual tinha alguma proximidade, foi de algum nervosismo. Já na altura era muito evidente que as opções não eram propriamente para resolver o problema, eram para os maquilhar. Portanto, houve ali alguma dificuldade na elaboração da própria intervenção.
E o que é que lhe passava pela cabeça?
Como é que não estrago, como é que não borro a pintura... era um bocado isso. Isso teve alguma exigência e foi uma circunstância de nervosismo que durante muito tempo não passou.
Não passou?
Não, e mesmo quando achamos que já temos alguma experiência e algum traquejo, de repente surge uma circunstância nova que ainda não tínhamos ponderado até àquela altura e que cria uma nova dificuldade ou, pelo menos, põe-nos no sítio. É quase como se fosse "achavas que já tinhas aprendido tudo, então toma lá atenção para coisas novas que podem sempre aparecer, e põe-te no sítio".
Os seus camaradas davam-lhe algumas pistas, conselhos?
Foram tantas ao longo dos anos, mas lembro-me de o Bernardino [Soares] uma vez me ter dado uma sugestão antes de uma coisa que até teve alguma repercussão e viralização do ponto de vista das redes sociais, que foi um pedido de esclarecimento que fiz a uma deputada do PSD, nos tempos da troika no governo PSD-CDS, e de uma declaração de inconstitucionalidade - uma das 13 que o Tribunal Constitucional declarou no tempo daquele governo PSD-CDS. A deputada Teresa Leal Coelho fez uma intervenção quase que a dizer que os juízes do Tribunal Constitucional tinham de ser postos na linha.
Que amizades criou além daquelas no seu grupo parlamentar?
Deixe-me colocar a situação ao contrário: acho que não criei inimizades com ninguém. Houve pessoas com quem simplesmente não estabeleci qualquer tipo de relação e, portanto, não criei inimizades porque não tive com elas qualquer tipo de relação. Também acho que não fui insultuoso para ninguém, que não criei nenhum tipo de situação de inimizade. Dentro do meu próprio grupo parlamentar tenho relações mais próximas com umas pessoas do que com outras, mas diria que no quadro de funcionários da Assembleia da República - sejam funcionários da Assembleia ou outros trabalhadores de empresas externas que aqui prestam serviços nas cantinas, no bar, onde quer que seja - criei amizades muito boas.
E sabe os nomes desses funcionários, os do bar, por exemplo?
Sim, praticamente de todos eles. Quer que lhe diga o nome de quem? Posso dizer-lhe o nome de todos. Aquela que nos atendeu ali há pouco é a Ana, no outro bar estão a Carla, o Diogo, o Paulo, a Rosário, e alguns já nem cá estão. Inclusivamente, em relação às pessoas que fazem a limpeza das instalações da Assembleia da República, durante um período de tempo houve uma com quem eu e o meu camarada Miguel Tiago tínhamos uma relação muito próxima, porque ela todos os dias nos deixava um bilhetinho com um recado no gabinete, a D. Clarinda.
E quais eram os recados da D. Clarinda?
Todos os dias nos deixava um bilhetinho com uma mensagem diferente, uma coisa qualquer, ou que nos tinha ouvido no dia anterior e que tinha gostado muito de nos ouvir, ou a chamar a atenção para qualquer problema que ela própria tinha na vida dela ou de pessoas que ela conhecia.
E noutros grupos parlamentares houve gente com quem conseguiu estabelecer ligações mais próximas?
Não houve ninguém de outros grupos parlamentares com quem tenha ido jantar fora ou passar férias. Mas tenho uma boa relação com muitos outros deputados de outras forças políticas. Mas, na verdade, não passando destas quatro paredes. Houve alguns com quem jantei antes de serem deputados aqui, porque alguns dos deputados com quem aqui me cruzei já me tinha cruzado noutras circunstâncias e noutros espaços, nomeadamente na faculdade. Deputados e também membros do governo com quem me tinha cruzado nos tempos de estudante, mas isso foi antes das nossas encarnações políticas, digamos assim.
Está a esvaziar o gabinete, o que é que sente?
Por acaso, começo a chegar à conclusão de que não são assim tantas as coisas que aqui tenho. Porque as coisas verdadeiramente pessoais que aqui tenho são muito poucas, há algumas que, em termos de arquivo, não sei se fará sentido ficarem aqui ou noutro sítio, portanto é mais uma questão de arquivo e não tanto de objetos pessoais.
O que é que tem aqui de pessoal?
Pouca coisa. Tinha umas coisas que já levei, fotografias das minhas filhas e desenhos feitos por uma prima minha, tenho ainda ali um desenho que foi feito por uns estudantes de uma escola de Évora, que me foi oferecido depois de uma sessão do parlamento de jovens em que lá participei, e ofereceram-me um desenho do templo romano de Évora e com uma caricatura minha, portanto são coisas dessa natureza.
Alguma coisa ou momento especial que se recorde ao abandonar esta sala?
Foram alguns, mas não sou propriamente de ficar agarrado aos sítios e às coisas, cada coisa tem o seu espaço e o seu momento próprio na vida. Não estou deveras marcado pela nostalgia ou pela saudade, porque, por regra, olho mais para estas situações que a vida vai levando mais na perspetiva da folha em branco que pode começar a ser desenhada daqui para a frente, do que propriamente agarrado à nostalgia e à saudade daquilo que fica para trás.
E é desta vez que uma mulher pode assumir a liderança parlamentar?
Comecei a minha experiência parlamentar a lidar com uma mulher líder parlamentar, a Heloísa Apolónia, d"Os Verdes, com quem tinha, de resto, uma relação muito próxima e muito estreita do ponto de vista do trabalho que aqui desenvolvíamos. Em relação ao PCP, essa é uma possibilidade que sempre esteve em cima da mesa e que continua a estar. Temos a Alma Rivera, a Diana Ferreira e a Paula Santos.
Sendo uma delas, que conselho é que dava?
Deve haver, sobretudo, uma preocupação em não procurar fazer as coisas como eram feitas. Ou seja, não haver uma preocupação de fazer as coisas como eu as fiz nesta responsabilidade. Se pudesse dizer-lhes alguma coisa, diria que não se fixassem na ideia de terem de repetir as mesmas coisas. O estilo de cada um é o estilo de cada um e a forma de ser de cada um também o é.
Qual foi o momento mais marcante nestes anos todos aqui?
Talvez o dia em que conseguimos impedir que o PSD e o CDS continuassem no governo em 2015, 10 de novembro de 2015, se não me engano. Já não sei se foi a 10 ou se foi a 11 que foi votado o programa de governo e foi chumbado. Talvez esse tenha sido o dia, até pela manifestação que houve à porta, à qual eu, Jerónimo de Sousa e Francisco Lopes nos dirigimos depois da rejeição do programa do governo. Foi preciso fazer das tripas coração para conseguir aqui, na Assembleia da República, dar tradução à luta que se ia fazendo nos locais de trabalho, nas grandes manifestações que foram feitas, nas pequenas e grandes lutas que foram travadas naqueles quatro anos. Se calhar, foi esse o momento mais alto que aqui vivi.
Ficou surpreendido com o resultado das eleições de 2015?
Isso para nós, no fundo, não foi uma surpresa, porque sabíamos que, concorrendo coligados, o PSD e o CDS podiam beneficiar, do ponto de vista eleitoral, dessa coligação. A questão verdadeiramente decisiva era saber se, efetivamente, perdiam maioria absoluta na Assembleia da República ou não. E perderam, tinha de se travar o passo, porque se não se travasse o passo naquela altura ia certamente continuar-se pelo mesmo caminho.
E essa possibilidade concretizou-se. Como é que foi gerir estes anos a "geringonça"? Ou não gosta da expressão?
Só não gosto da expressão porque acho que induz em erro. Primeiro, porque parece que a solução política que se encontrou é uma coisa abastardada. E, sobretudo, porque depois induziu muita gente em erro com a ideia de que estávamos todos no governo, de que era um governo de esquerda e que estávamos todos com a mesma perspetiva e todos unidos para o mesmo. Mas na verdade o que acontecia era que uns puxavam para a frente e outros para trás, havia uns que tentavam empurrar para que as coisas andassem para a frente e havia outros que iam resistindo arrastando os pés.
Quem é que empurrou para a frente?
É manifestamente óbvio que fomos nós. Com a força que aqui tivemos, tentámos empurrar para a frente o mais que pudemos para que houvesse, de facto, soluções para os problemas das pessoas e para as expectativas que tinham sido criadas. Da parte do PS houve uma permanente atuação de resistência e tentativa de entravar as coisas, que agora está refletida nestas declarações que foram feitas pelo ministro Santos Silva, que diz que o PS esteve sob chantagem.
E o Bloco puxava para onde?
O Bloco foi ao longo destes seis anos uma força que conseguiu acompanhar muitas das iniciativas que nós desencadeámos na Assembleia da República, algumas das quais até colando-se a elas muito rapidamente, de maneira a que pudessem aparecer aos olhos das pessoas como de autoria conjunta, quando éramos nós que dávamos o impulso para que elas pudessem ser alcançadas. Se tivessem assumido mais vezes o papel de empurrar para a frente em vez de se colarem a quem resistia talvez até pudesse ter sido mais útil.
Em que altura é que sentiu que a "geringonça" estava a começar a perder o andamento?
Nós nunca criámos ilusões, percebemos em outubro de 2015, e as primeiras discussões com o governo do PS clarificaram isso. Repare numa coisa, porque é algo que vale a pena registar: logo naquelas discussões com o PS a seguir às eleições, para se perceber que tipo de convergência é que havia, qual a que seria possível haver e o que poderia ser fixado do ponto de vista de objetivos concretos dessa convergência, não ficou lá escrito o aumento extraordinário de pensões. Porquê? Porque o PS não queria. Isto é verdadeiramente revelador das limitações com que partimos para esta discussão de 2015. Nunca tivemos ilusões.
E em 2019?
À direita, os partidos continuavam a estar em minoria, mas à esquerda do PS o PS tinha ganho mais força e nós tínhamos perdido força. Percebemos que aquele resultado eleitoral iria servir ao PS para que pudesse acentuar as suas resistências e recusas daquilo que era necessário fazer-se. E isso acentuou-se logo com o Orçamento Suplementar de 2020, a partir do momento em que o PSD disse ao PS que se iria abster ma votação do Orçamento por ser um problema de interesse nacional [por causa da pandemia] e, portanto, que fizessem o que quisessem que eles se absteriam e não criariam obstáculos. Aquela alteração de correlação de forças de 2019 marcou definitivamente, entre nós e o PS, a forma como o PS começou a procurar desfazer-se da nossa influência. Circunstancialmente, no Orçamento para 2021 não puderam levar isso por diante, mas chegaram ao Orçamento para 2022 e acharam que era altura de deitar isto abaixo para ter maioria absoluta e alcançaram o objetivo.
O que é que ainda não sei do que se passou?
Creio que o governo não iniciou o debate do Orçamento com a ideia de deitar o governo abaixo sob o pretexto do chumbo do Orçamento. Admito que não fosse esta a perspetiva inicial, mas a forma como as coisas se foram desenrolando e como as coisas se foram fazendo, convenhamos que não aponta outra hipótese a não ser, de facto, que a uma determinada altura tenham feito contas e tenham achado que era o tempo certo para deitar o governo abaixo e tentar a maioria absoluta, porque mais à frente seria diferente.
Qual foi a gota de água?
Não foi gota de água, mas acho que houve, de facto, um momento em que isso se tornou mais claro. Foi quando o Presidente da República fez aquela declaração em que disse que, não havendo Orçamento, haveria eleições em janeiro. Porque, eventualmente, a única coisa que impediria o PS de deitar o governo abaixo para ir atrás da maioria absoluta era se o Presidente da República marcasse as eleições mais para a frente. E assim daria tempo ao PSD e ao CDS para se organizarem e aí, eventualmente, o PS já não teria interesse nisso e, portanto, faria um esforço para haver Orçamento na mesma. Mas a partir do momento em que o Presidente da República fez essa declaração, essa questão dissipou-se, porque as eleições iam ser feitas em cima dos congressos e das disputas internas que o PSD e o CDS já tinham marcadas. Foi a partir dessa declaração do Presidente da República que ficaram mesmo claras as intenções que o governo tinha de deitar o governo abaixo com o pretexto do Orçamento, provocando a sua não aprovação.
Não será garantidamente a sua última campanha, mas esta como foi?
[Risos.] Desculpe a minha gargalhada, mas olhando para trás para esta campanha, noutra circunstância até podia ser um riso nervoso, mas é só um riso de ter passado o nervoso. Esta campanha foi, no mínimo, a campanha mais atípica em que participei. Durante o mês de dezembro fez-se esse trabalho de contacto com as populações com uma grande assertividade. Chegámos a janeiro, e nas primeiras semanas mantivemos o mesmo ritmo, mas depois, entretanto, o Jerónimo teve de ser sujeito àquela cirurgia e eu tive de me desviar logo para duas iniciativas que inicialmente estava previsto serem com a presença dele, mas depois tive de ser eu. Depois houve aquele problema com o João Ferreira, e eu tive de fazer mais aquele esforço de assegurar o resto das iniciativas da campanha central. A nossa campanha eleitoral não é uma coisa feita por via da comunicação social, é uma campanha feita com presença e com as pessoas no terreno. Mas às tantas já só nos ríamos para não chorar de tanta dificuldade.
E a ausência de Jerónimo também teve consequências?
Teve consequências, obviamente. O Jerónimo, nas responsabilidades que tem enquanto secretário-geral, ultrapassa em muito as fronteiras do PCP e da CDU. Porque há muitas pessoas que olham para ele e lhe reconhecem características individuais e próprias que valorizam. E identificam-se com ele e com o percurso de vida dele, com a atitude, disponibilidade e entrega que demonstra. E é naturalmente por isso que a falta do Jerónimo na campanha foi um prejuízo evidente.
Foi substituir o Jerónimo de Sousa nos debates. Como foi fazer de Jerónimo?
Felizmente, ninguém me colocou a questão nesses termos, se não provavelmente tinha caído da cadeira abaixo. Se me tivessem posto isso nesses termos, nem eu alguma vez conseguiria encarar isso dessa forma. Portanto, não é propriamente quem é que vai fazer de Jerónimo, mas sim quem é que vai assegurar aquelas ações de campanha, sejam as ações de campanha que estavam definidas no quadro de campanha da CDU, sejam as iniciativas da campanha que estavam organizadas num outro quadro, nomeadamente nos debates. É uma dessas situações em que quando achamos que já temos tarimba para enfrentar tudo, aparece algo de novo para nos pôr no sítio.
Como é que olha para os resultados das legislativas?
Com preocupação em relação ao futuro, porque acho que os quatro anos que vamos ter pela frente vão ser muito difíceis.
Estou a falar dos seus resultados...
Mas é nesse quadro que coloco isso tudo. Porque a situação que vamos ter nos próximos tempos é uma situação dificílima, na medida em que a experiência que temos com maiorias absolutas é aquela que conhecemos. E considerando que temos no quadro da Assembleia da República menos força para intervir do ponto de vista parlamentar, isso levanta questões relativamente à forma como vamos ter de nos organizar para assegurar que a nossa intervenção, seja no quadro da Assembleia da República ou fora dela, esteja efetivamente à altura das necessidades do povo português e dos trabalhadores, para garantir que isto será ultrapassado.
Quando olha para o seu partido e para os resultados, o que é que sente? Utiliza a mesma expressão que utilizou há instantes, preocupado?
Não, nada disso. A bipolarização é um dos elementos, mas acho que há vários elementos relevantes que refletem não apenas os resultados mais gerais, mas também os resultados da CDU. A questão do quadro em que as eleições são precipitadas, todo o cenário de agigantamento do medo em relação à direita... Repare que quando este conjunto de fatores se juntam não se está a afirmar que as pessoas deixaram de decidir por si próprias. O que se está a destacar é que tudo isto serviu como fator de condicionamento das opções das próprias pessoas. Porque as pessoas pensam pela sua própria cabeça e naquilo que melhor lhes serve, mas se o bombardeamento que é feito, procurando condicionar o voto num determinado sentido, atinge esta dimensão, ninguém pode estar à espera que as pessoas fiquem imunes a tudo isto.
Os eleitores estão a votar cada vez menos no PCP por alguma razão específica?
Estou convencido de que estes resultados eleitorais destas eleições legislativas são resultados conjunturais. Ou seja, nesta conjuntura, com estes fatores todos, provocaram este resultado, mas que mais à frente irão ser diferentes. Estas circunstâncias e este conjunto de fatores que se reuniram neste momento não se irão repetir daqui a quatro anos. Até porque, nessa altura, vamos estar no final de quatro anos de maioria absoluta do PS, num quadro completamente diferente daquele que estávamos agora. Agora, objetivamente, quando há bocado lhe caracterizava o resultado global das eleições como preocupante, sobretudo a maioria absoluta do PS, acho que em relação ao resultado da CDU é, de facto, um resultado desafiante e muito exigente. Naturalmente, tendo nós agora menos força do que tínhamos anteriormente, estamos em condições mais difíceis do ponto de vista de alcançar esses objetivos. Mas acho que isso é sobretudo desafiante sob o aspeto de identificação de medidas que têm de ser tomadas para garantir que a nossa intervenção parlamentar não deixa de ser a intervenção que traz à Assembleia da República não apenas os problemas, mas que encontra as soluções para esses problemas, e que, obviamente, terá de contribuir com essa força para garantir que as soluções possam ser alcançadas.
Faz sentido o seu partido repensar a forma como intervém na sociedade e reequacionar uma outra forma de posicionamento?
O acerto da nossa orientação política não é, nem pode ser, medido pelos resultados eleitorais, porque, naturalmente, os resultados eleitorais são influenciados por muitas outras coisas que não a orientação política do PCP. Claro que há um conjunto de fatores externos que não dependem de nós, nomeadamente o posicionamento de outros partidos, a forma como, do ponto de vista global e mediático, a posição de cada um é expressa. Temos de continuar a defender a nossa orientação política, como fazemos de quatro em quatro anos em cada congresso, em função da situação em que está o país e da perspetiva de solução para os problemas do país. Do ponto de vista da atuação em concreto, dos meios em concreto e da forma como nos organizamos e como intervimos na sociedade, ela nunca estará cristalizada. Vamos encontrando formas diferentes de nos organizarmos e intervirmos nos problemas, em função da própria dinâmica que a realidade impõe.
Mas um partido vive dos votos e dos eleitores...
Um partido como o nosso não. Se fosse assim, nem sequer existíamos, pois se durante 48 anos não pudemos participar em eleições, já viu se vivêssemos dos votos? Essa questão é que é a questão verdadeiramente decisiva: nós não vivemos nem dependemos de votos para viver. O nosso partido vive e sobrevive, sobretudo, da relação e ligação direta aos trabalhadores e às suas necessidades.
Um partido sem votos não tem representação nas autarquias, não tem representação no Parlamento, não existe...
Pois eu digo-lhe desde já que nós não vivemos das eleições, nem dependemos das eleições para existir, mas não é indiferente na representação institucional a força que temos nos votos. Ou seja, esta é a síntese da resposta que tem de ser dada. O que isto significa é que a nossa existência enquanto partido não está dependente de termos votos ou deixarmos de ter, ou de termos representantes ou não. Naturalmente, se tivermos mais representação na Assembleia da República, temos mais condições para, do ponto de vista das decisões que são tomadas aqui na Assembleia, que elas sejam coincidentes com aquilo que, no dia a dia, os trabalhadores precisam. Agora isso significa que abandonamos os aspetos essenciais da nossa intervenção e da nossa organização, e também os nossos objetivos estratégicos, em função de poder ter mais votos? Não. A dimensão da nossa intervenção enquanto partido vai muito além da dimensão eleitoral e a raiz que tem verdadeiramente é a da dinâmica do dia a dia, das lutas que os trabalhadores empreendem nos seus locais de trabalho.
Sigo a sua ideia e fico eu com a ideia de que, se perdessem a representação parlamentar e autárquica, o partido seria uma força sindical...
Não, não, não, absolutamente. Porque, enquanto partido político, temos um papel que não é o papel dos sindicatos. Acho que não vale a pena sequer ninguém viver amedrontado com isso. Repare que, cinco anos depois de termos sido criados, houve um golpe militar que instaurou o fascismo em Portugal. E logo nessa altura uma das grandes orientações do golpe que permitiu implantar o fascismo em Portugal era acabar com a ameaça comunista. Pela experiência que já temos destes quase 100 anos, temos bagagem que nos permite encontrar soluções para evitar que isso aconteça. Ao longo dos anos, o PCP foi sofrendo golpes duríssimos e em alguns momentos até com a prisão de quase todos os dirigentes. Houve circunstâncias durante o período da ditadura em que os principais dirigentes do PCP estiveram encarcerados. Por tudo isto, não vivemos desesperados com aquilo que são os resultados eleitorais.
Quando é que se sentiu comunista?
Isso é um percurso que se vai fazendo, mas quando me aproximei da JCP foi com 15 anos.
Porque é que é comunista?
Porque continuo a achar que não podemos viver na sociedade em que estamos e que a humanidade tem condições para dar a todos os seres humanos outras condições mais próximas das suas realizações enquanto seres humanos.
Isso é ser comunista?
Sim, é lutar pela transformação da sociedade para garantir que as condições que existem no mundo devem ser postas ao serviço de todos os seres humanos, e não apenas de alguns. Portanto, a minha conceção dessa sociedade nova é esta, que se encaixa na perspetiva com que o PCP continua a intervir.
E agora o que vai fazer?
Não sei, existem várias possibilidades. De profissão, sou advogado, de consciência e de atitude, sou comunista, e, portanto, hei de encontrar o caminho a fazer em função dessas possibilidades e das necessidades que existem. Não tenho nenhuma perspetiva definida relativamente ao que irei fazer deixando de ser deputado, não sou nem funcionário do partido, nem sou advogado, não sou coisa nenhuma. Vou ter de me definir nos próximos tempos para ver o que fazer da minha vida. Mas a minha disponibilidade é continuar a dar contributo à luta que é preciso fazer, sobretudo nestas condições mais difíceis em que ficamos. Naturalmente, esse contributo tem de ser avaliado, em primeiro lugar, pelo meu partido e por aquilo que o meu partido acha que eu possa ser útil, e também em função daquilo que são as minhas próprias capacidades e possibilidades, incluindo como advogado. Admito que o percurso imediato que possa fazer possa ser voltar à advocacia e intervir como advogado e dar também um contributo para a luta que vamos travando.
Imagina-se a liderar este partido?
Não. Acho que não tenho capacidades para isso. Não tenho as características para ser líder do PCP.
Se o seu partido assim o quisesse, recusaria?
Não consigo imaginar isso porque, além de essa questão não estar em cima da mesa, a consideração que é feita a propósito das características que são necessárias para uma responsabilidade dessas a mim descansam-me desse encargo.
Quais são essas características?
É um conjunto que tem de se reunir para garantir que quem vai assumir essa responsabilidade a irá assumir em toda a sua dimensão. É porque ser secretário-geral do PCP não é só participar em debates eleitorais ou fazer campanhas eleitorais, é muito mais que isso. Não apenas do ponto de vista interno, mas do ponto de vista de tudo aquilo que vai para lá da intervenção eleitoral ou institucional e que tem de ser assumido. Portanto, são coisas para as quais eu, olhando para mim, não tenho características. Não sei se dei a resposta que estava à espera que lhe desse, mas genuinamente não considero outra.
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