João Correia acabou de ler um livro sobre como pequenos negócios podem florescer em sítios difíceis, como uma prisão ou um campo de refugiados. O que resulta e o que não vale a pena? É esta pergunta que o persegue enquanto empresário de ciclismo. E não se tem dado mal. O ex-ciclista português, radicado nos EUA, representa os ciclistas do momento em Portugal: João Almeida e Rúben Guerreiro. Na sombra viu os dois compatriotas brilharem na Volta à Itália em bicicleta e ainda acabou a dar boleia ao troféu, ganho por Tao Geoghegan Hart, que também representa. Entre os 25 atletas agenciados está também Mads Pedersen, campeão mundial de estrada em 2019. Nomes e conquistas que fazem do português um dos maiores empresários da modalidade..Correia simboliza o sonho americano. Nascido em Cernache do Bonjardim (na Sertã), na ressaca da Revolução dos Cravos (10 de fevereiro de 1975), João viu os pais serem obrigados a emigrar para os EUA sem nada, quando tinha 11 anos. E do nada conseguiu quase tudo com a ajuda de uma bicicleta e de muito querer..Tudo começou um "bocadinho por acidente na escola". "Eu gostava de jogar futebol e de andar de bicicleta. Quando tinha 14 anos, o meu treinador de ciclismo disse-me que devia deixar o futebol e experimentar o atletismo, que potenciava mais o meu desempenho em cima da bicicleta. Eu era alto e magrinho, comecei a correr e tive alguns resultados muito bons, que me permitiram ganhar uma bolsa de estudo universitária no atletismo", contou João Correia ao DN..Foi fazendo provas de corta-mato sem perder o foco no ciclismo. Mesmo vivendo nos EUA, foi chamado à seleção nacional e representou Portugal em mundiais nas categorias de formação, mas depois resolveu parar e investir nos estudos, licenciando-se em Negócios Internacionais e Ciências Políticas pela Fordham University, em Nova Iorque. Seguiram-se dez anos de trabalho na área da comunicação. Passou por algumas das mais importantes revistas americanas do grupo Hearst, como a Esquire..Andava entretido e fascinado com o mundo dos negócios e da publicidade. Viajava para todo o mundo. Trabalhou em Nova Iorque, São Francisco, Milão e Praga para várias revistas de moda, até o ciclismo o seduzir outra vez. O antigo patrão chamou-o para ser diretor comercial da Bicycling Magazine, a maior revista de bicicletas do mundo. Ele aceitou e foi à arrecadação buscar a bicicleta: "Estava muito pesado, ganhei uns 60 kg e comecei a andar de bicicleta para perder peso. Daí a voltar a competir foi um instante e, quase sem saber como, voltei a ser ciclista profissional, e cheguei a uma das melhores equipas." Ia fazer 35 anos quando em 2010 assinou pela Cervélo. Foi notícia em todo o mundo e matéria de destaque no The New York Times. Tinham-se passado quase dez anos e ele já estava mais para a idade da reforma do que para o pelotão mundial..O conto de fadas durou apenas um ano. Correu ao lado de Thor Hushovd e de Carlos Sastre, mas, com o fim da Cervélo, o português voltou aos EUA e foi trabalhar para o LinkedIn, em São Francisco. Só que o mundo da publicidade tinha mudado muito e ele não se revia no novo modelo digital, e foi então que resolveu fundar uma empresa. "Fundei a Corso Sports Marketing com um colega alemão, o Ken Sommer, em 2013, e tem sido uma experiência muito interessante. Reparámos que não havia empresários que se dedicassem aos ciclistas. Os que havia eram ex-ciclistas que ajudavam e encaminhavam os atletas, mas sem uma estratégia ou objetivo de carreira. Ser ex-ciclista não te dá qualificação para representar os interesses de um ciclista, tem de haver comprometimento e conhecimento do desporto e do mercado", explicou ao DN o também fundador da inGamba Tours (turismo de bicicleta)..Apostar em jovens atletas, que pudessem crescer com a empresa, foi o caminho para o sucesso: "Não existem escolas como no futebol, mas há provas locais e seleções nacionais. É preciso olhar para as escalas de formação e correr a Europa para ver provas. O Sommer faz o recrutamento e eu negoceio os contratos.".Um dos ciclistas que estão na Corso quase desde o início é Tao Geoghegan Hart, o vencedor da Volta à Itália 2020. "O Giro 2020 foi muito especial para nós. Dos cinco atletas representados, quatro vestiram camisolas. O Tao venceu, o João andou de rosa 15 dias e o Rúben venceu uma etapa e ganhou a classificação de montanha. O Tao tinha a missão de ajudar a puxar pelo Thomas, mas a partir do momento em que ele caiu podia tentar a sua sorte. O João superou todas as expectativas, era a estreia em grandes voltas e só estava habituado a fazer provas de uma semana, por isso ser líder durante duas semanas numa corrida de três semanas e acabar em quarto da geral é fenomenal", elogiou..Trocava mensagens curtas com eles - "mais um dia, vamos lá" - para não atrapalhar o descanso e não exercer pressão. O João respondia sempre: "Bota fogo", que é como quem diz "põe gasolina nisso". A humildade do ciclista de A-dos-Francos "chega a ser comovente" para João Correia, que, quando percebeu que o nervosismo estava a assombrar o jovem de 22 anos, pediu a Tao, mais velho e mais experiente, para falar com ele e o aconselhar. "Cada um tem de defender os interesses das suas equipas, mas quando tudo é igual, digo-lhes que tentem ajudar-se uns aos outros", confessou, orgulhoso pelo bom ambiente criado entre os ciclistas da Corso. No final da prova, o luso-americano fretou um avião para ir a Milão buscar os seus ciclistas, e foi assim que o troféu quase veio para Portugal: "Parámos em Barcelona para deixar o Tao e ainda ameaçamos trazer o troféu para Lisboa [risos].".João Almeida (Deceuninck-Quick-Step) deu ainda mais romantismo à maglia rosa, mas quem venceu foi Tao Hart. E por quem torceu o empresário nas últimas etapas? "No comments", atira João, confessando que teve alturas em que se sentiu no papel de pai que tem de escolher de que filho gosta mais: "Sendo um português emigrante que desenvolveu um profundo amor a Portugal, foi muito especial para mim ver o João e o Rúben brilhar, mas o Tao está comigo desde o início e é um miúdo fantástico, que se eu estiver doente está sempre a ligar a ver se estou melhor, e eu tenho de lhe dizer que eu é que tenho de tomar conta dele.".Para consolo dos portugueses fica a crença do empresário sobre "o futuro brilhante"da pantera das Caldas, que "ainda vai dar muitas alegrias ao país". O bom desempenho do português pode ser uma grande surpresa para alguns, mas não para quem acompanha o ciclismo e olha para o currículo de João Almeida: "O Giro foi apenas a catapulta para a ribalta.".De olho no ciclismo nacional e "nesta geração fantástica", o empresário português quer tentar ajudar na internacionalização. Portugal tem cada vez mais atletas no estrangeiro (14). Nesta altura são seis no World Tour - Ivo Oliveira, Rui Costa e Rui Oliveira na UAE Team Emirates, Rúben Guerreiro na Education First, João Almeida na Deceuninck-Quick-Step e Nelson Oliveira na Movistar Team - e podem chegar a 15 na próxima década. "Temos muitos jovens com talento, mas por vezes não seguem uma carreira internacional por falta de oportunidades. A partir do momento em que eles entram no círculo do ciclismo português é mais difícil tirá-los. Temos uma cultura de ciclismo um bocado fechado", lamentou o empresário..Nelson Oliveira é outro dos cinco portugueses que João Correia representa e que um dia ajudou a conquistar uma medalha de prata no Mundial de contrarrelógio. "Eu ainda trabalhava na Bicycling quando o José Poeira [selecionador nacional] me ligou a dizer que tinha um miúdo que podia ser campeão do mundo de contrarrelógio. Portugal tinha muito valor jovem, mas o contrarrelógio é a uma disciplina na qual nunca brilhámos, mas confiei no Zé. O problema é que o miúdo [Nelson Oliveira] não tinha uma bicicleta adequada, e no contrarrelógio isso é muito importante. Eu arranjei uma bicicleta e vi-o conquistar a prata. Depois fui conhecê-lo e dei-lhe a bicicleta", contou..Este é o tipo de coisas que ainda o seduzem no ciclismo, um mundo muito pequeno em que as relações e a palavra ainda têm valor. Ele gosta disso. E de ler, viajar, conhecer hotéis e comer, tanto que já tem uma tradição. O primeiro almoço em Portugal é sempre um arroz de cabidela no Tia Matilde (famoso por causa de Eusébio) e o jantar no balcão do Gambrinos, em Lisboa. Na despedida repete o ritual para levar saudade com ele até ao regresso...