"Somos muito mais felizes com ela. Ensina-nos muito e faz-nos ver a vida de uma forma diferente. Ela é uma lutadora", diz Isabel Valério sobre a filha "que fala pelos cotovelos" e gosta de ajudar os outros. Joana, de 20 anos, sofre de uma doença rara, difícil de pronunciar e ainda mais difícil de conviver. Uma condição de saúde que afeta 300 milhões em todo o mundo. Na Europa são 30 milhões e estima-se que em Portugal sejam entre 600 e 800 mil. Nesta quinta-feira assinala-se o Dia Mundial das Doenças Raras com a realização da conferência "Fazer a ponte entre a saúde e a assistência social", no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (INSA)..Mas apesar dos obstáculos que a mucopolissacaridose tipo 1 (MPS 1), também conhecida por síndrome de Hurler, lhe coloca na vida, Joana e a família não se queixam. "Temos de viver um dia de cada vez e fazer o melhor que pudermos para sermos o mais felizes possível", reforça a mãe, que prefere deixar de lado os lamentos..Isabel Valério e o marido foram confrontados com o diagnóstico que nenhum pai quer ouvir. Joana ainda não tinha 18 meses, estava com dificuldades em respirar e foi às urgências. À médica chamou-lhe a atenção para os olhos e a barriga muito grandes. O alerta estava dado e a médica, que já tinha visto um caso semelhante, passou a informação ao pediatra que seguia a bebé..Doença degenerativa sem cura.Quando Joana tinha 2 anos, estes pais de Leiria receberam a notícia de que a filha tinha uma doença genética rara que afeta uma em cem mil pessoas. Na altura, a informação não era muita e a mãe recorreu à internet em busca de tudo o que podia encontrar sobre a doença, e nas pesquisas realizadas a esperança média de vida era de três a quatro anos, dependendo da gravidade. "Foi um descalabro, tiraram-nos o chão dos pés. É ver os nossos sonhos irem todos por água abaixo, um segundo filho, uma menina, e começamos logo a ter os nossos sonhos. A partir daí começamos a pensar: 'Ela poderá viver mais um ano, dois anos.' Esta doença é degenerativa, não tem cura", sublinha Isabel Valério, mãe de três filhos..Com 20 anos, Joana mede 1,26 metros e pesa 25 quilos. "É pequenina porque esta doença afeta o crescimento, provoca deformações ósseas, geralmente na coluna", resume. Foi, aliás, na sequência da segunda cirurgia à coluna que Joana deixou de andar. Tinha 10 anos. Os pais sabiam do risco. Quem sofre da doença de Hurler padece também de problemas cardíacos, do aparelho respiratório e da visão..Uma doença que se caracteriza pela falta de uma enzima, a alfa-L-iduronidase, "responsável por fazer a limpeza do organismo". "Ela começava já a falar e foi-nos dito que, como é uma doença que afeta também ao nível cognitivo, a Joana podia desaprender tudo aquilo que foi aprendendo. Que ia deixar de andar, que nunca ia deixar a fraldita. Pintaram um cenário muito complicado.".Jovem de 20 anos com "coração de uma pessoa com 90".O diagnóstico levou os pais a estar "em luto alguns meses". Mas apesar do choque da notícia, Isabel Valério não baixou os braços e descobriu que estavam a ser feitos na Alemanha ensaios clínicos com o medicamento Aldurazy. "A enzima que lhes faltava iria ser criada artificialmente." Estava preparada para sair do país, mas os ensaios clínicos começaram a ser feitos em Portugal e Joana foi uma das cinco crianças que os começou a fazer no Hospital Pediátrico de Coimbra há 16 anos. Hoje estão vivas duas delas, a Joana e uma criança do Entroncamento, conta Isabel..A jovem de Leiria faz o tratamento semanalmente em Coimbra. Está ligada a uma máquina durante cinco horas, período durante o qual é-lhe administrado o medicamento intravenoso. "Não é uma cura, mas não deixa agravar a um ritmo tão acelerado a doença", explica, ciente da fragilidade da condição de saúde da filha. "O estado deles agrava-se na parte cardíaca ou respiratória. A minha filha tem um coração de uma pessoa com 90 anos", exemplifica..Joana "adaptou-se muito bem à deficiência e a lidar com ela", diz a mãe, que se orgulha do percurso da filha. "Como pais achámos que ela devia passar por tudo, sempre lutámos para que ficasse no ensino normal, com a ajuda de tarefeiras, mas a frequentar tudo o que os outros frequentavam." Concluiu o 12.º ano profissional e está a trabalhar no centro de inclusão digital do Instituto Politécnico de Leiria. Ajuda crianças e adultos com deficiência a comunicar através das novas tecnologias e faz a adaptação de livros para braille. E quer continuar a estudar, diz a mãe sobre a filha que adora conhecer "gente famosa"..Também os irmãos se adaptaram à condição de Joana, a filha do meio. A mais nova tem 12 anos e há dois que ajuda a dar banho à irmã. Todos ajudam na logística diária de uma casa de cinco. "Dão-se todos lindamente e quando a irmã fica internada fica tudo com o coraçãozinho... todos sabemos o que pode acontecer", relata Isabel Valério. Mas apesar de tudo conseguem "lidar todos bem" com a situação e levar a vida dentro da normalidade possível. "Não adianta nada ser de outra forma", explica..Cartão da Pessoa com Doença Rara. Já foram emitidos mais de cinco mil.Para melhorar o acesso, o atendimento e garantir os serviços de saúde adequados à sua situação, Joana tem um Cartão de Pessoa com Doença Rara. Um documento que permite assegurar aos profissionais de saúde o acesso à informação relevante do doente, à sua especificidade clínica, como a medicação que faz e quem é o médico que acompanha o doente..O Cartão da Pessoa com Doença Rara existe desde 2014 e até ao final de 2017 foram emitidos 5012, segundo dados da Direção-Geral da Saúde (DGS). A fibrose quística, a polineuropatia amiloidótica familiar e a hemofilia A grave estão entre as doenças raras com mais cartões requisitados.."É uma ajuda", para as famílias e para os profissionais de saúde, sublinha Isabel Valério. Na altura em que a filha foi diagnosticada com MPS 1 havia pouca informação sobre as doenças raras e constata que se tem "evoluído bastante" nessa área..Há mais de seis mil doenças raras.Uma doença é considerada rara se afetar no máximo uma em cada duas mil pessoas. Há mais de seis mil e cerca de 80% são de origem genética, explica Marta Jacinto, presidente da Aliança Portuguesa de Associações das Doenças Raras..Um dos "grandes problemas" que afetam os doentes raros é o diagnóstico, "muitas vezes difícil e demorado", diz. As pessoas podem passar por especialidades que não consideradas as certas para os seus casos e acabam de consulta em consulta até serem diagnosticadas, explica. "Mais investigação poderá melhorar a informação sobre as doenças raras e ajudar o diagnóstico", analisa..Defende também a existência de "mais formação e conhecimento por parte da medicina geral e familiar para quando há um sinal de alerta por forma a encaminhar de imediato os doentes para a consulta especializada"..À frente da Aliança desde 2012, Marta Jacinto considera que em "lado algum se investe como seria necessário para dar resposta às mais de seis mil doenças raras. Não é só um problema português". "A sensação dos doentes é que ainda não há investigação suficiente", reconhece..As doenças raras, defende, têm de "ser uma prioridade para Portugal". Admite, no entanto, que os recursos são limitados. "Mas é preciso ter noção de que um doente que receba tratamento e que possa manter a qualidade de vida continua a poder estar no mercado de trabalho, continua a poder produzir e a devolver ao país a aposta que é feita nele. Portanto, é muito importante que quando existe medicação ela seja disponibilizada.".Afirma que há, porém, "alguma aposta na investigação". "Obviamente que em termos das grandes companhias o interesse em investigar é necessariamente menor porque são menos pessoas as destinatárias de uma eventual medicação que venha a existir". Explica que há incentivos dados à indústria como os medicamentos órfãos, que são dirigidos para "o tratamento de doenças que são tão raras que os promotores estão relutantes em desenvolvê-los sob condições normais de comercialização, já que o pequeno mercado não irá permitir aos promotores a recuperação do capital investido na investigação e desenvolvimento do produto", explica o Orphanet, um portal europeu sobre doenças raras..A investigação em Portugal.O investigador João Lavinha, representante do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) na Comissão Interministerial da Estratégia Integrada para as Doenças Raras (2015-2020), explica que as farmacêuticas "têm um interesse reduzido" porque se trata de doenças raras e isso reflete-se no mercado. "A União Europeia, através da Agência Europeia do Medicamento, EMA, procura facilitar a vida à indústria através do reconhecimento da atribuição do estatuto do medicamento órfão a certas substâncias novas que são descobertas e isso facilita a vida às indústrias e dá-lhes algumas garantias de que podem ter algum retorno do investimento no desenvolvimento de novas terapêuticas.".Em Portugal, diz, "estão já no terreno e a funcionar vários centros onde se faz investigação em doenças raras"..O departamento de genética humana do INSA, onde trabalha, é um dos locais onde é realizada investigação a vários grupos de doenças raras. Também no INSA do Porto. Igualmente a norte, há o i3s, Instituto de Investigação e Inovação em saúde da Universidade do Porto. Há centros de investigação na universidade e no hospital dos Açores e em Coimbra, "só para citar alguns casos", refere..João Lavinha, que, salvaguarda, fala a título pessoal e não como representante do INSA na comissão interministerial, acrescenta ainda que no ano passado foi criada a Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica, a AICIB, que "está em regime de instalação". "Vai ter financiamento do Infarmed e da própria Fundação para a Ciência e a Tecnologia [FCT]." "É promissora", afirma, referindo que a FCT financia em todos os domínios científicos. "Esta agência já está muito mais próxima das questões das doenças e em particular das doenças raras", explica..Lacunas na investigação.Mas há mais a fazer nesta área. E é nesse sentido que foi elaborada uma agenda de investigação, desenvolvimento e inovação em doenças raras pela comissão interministerial, que resulta de um "encontro com a comunidade científica, as associações de doentes, os clínicos que acompanham os doentes". O documento irá ser entregue às entidades financiadoras em Portugal, que passam pela FCT, fundações como a da Gulbenkian, ligadas à banca e à indústria farmacêutica como a Bial, e fundos europeus como o Portugal 2020.."Mas o que caracteriza a investigação que já há em Portugal é o facto de estar sobretudo virada para a descoberta das causas e para os mecanismos das doenças raras", enquadra o investigador. Ou seja, o foco está em saber quais são as alterações genéticas que causam as doenças raras e como é que essas alterações começam a aparecer, as manifestações clínicas, "o chamado mecanismo da doença".."No meu departamento já estamos a usar o conhecimento dos mecanismos para delineamento de novas terapêuticas", afirma. E explica como é o processo: "A primeira fase foi conhecer a causa, depois como essas alterações se manifestam e através do conhecimento dos mecanismos nós conseguimos intervir. É aqui que entra a inovação da terapêutica.".Um trabalho que se encontra numa fase muito inicial. "Começámos agora lentamente e pontualmente a avançar, ainda muito em laboratório, em ensaios clínicos.".Proposta para centros de referência englobarem mais doenças.Uma das propostas dentro da estratégia integrada para as doenças raras prende-se com os centros de referência, com base hospitalar, que existem no país..Atualmente estes centros, que são os melhores locais para o diagnóstico e a terapêutica dos doentes, englobam "apenas seis grupos" destas doenças, como explica Marta Jacinto, da Aliança..João Lavinha refere que um dos objetivos passa por reverter esta situação com uma "proposta de novas áreas de patologias raras que careceriam de centros de referência"..Considera que a investigação em serviços de saúde é "praticamente inexistente". Ou seja, investigar as melhores formas para organizar os serviços de saúde abrangendo também os serviços sociais e de educação. "Tem que ver com inventar novas formas de organizar os recursos já existentes de modo a que os tratamentos cheguem a toda a gente.".Até porque na área da saúde há "muitas desigualdades ao nível da distribuição geográfica, há muitas assimetrias entre o litoral e o interior". Um problema que não é exclusivo das doenças raras. "Um dos objetivos desta estratégia integrada é procurar que independentemente do local de residência da pessoa ela tenha um acesso idêntico aos recursos disponíveis, que desde logo são poucos porque são doenças na sua maioria incuráveis", explica..Não há um registo nacional de doenças raras.Estima-se que há entre 600 e 800 mil portugueses com doenças raras, mas não há nenhum registo nacional destas patologias. "Não só não há o registo como há muitas pessoas que terão doença rara mas ainda não estão diagnosticadas como tal", enquadra Marta Jacinto.."É muito importante perceber quantos doentes são e onde estão para conseguir dimensionar os serviços e ter respostas adequadas", considera a presidente da Aliança Portuguesa de Associações das Doenças Raras..Um registo nacional serviria para "melhorar o conhecimento em relação aos doentes, onde estão e como estão a reagir às terapêuticas", acrescenta João Lavinha. Criar um registo era, em 2015, o primeiro objetivo da estratégia integrada para as doenças raras. "E quatro anos depois não temos o registo construído", lamenta o investigador, que fala de um processo com obstáculos e moroso.."Do meu ponto de vista, a razão pela qual não temos um registo das doenças raras é também expressão da forma como a assistência médica é fornecida em Portugal. A maior parte dos cuidados de saúde visam o diagnóstico, o tratamento e a reabilitação das pessoas doentes. Os serviços de saúde não têm muita disponibilidade para fazer o trabalho de epidemiologia que é de saber quantos são e onde estão os doentes, o que lhes vai acontecendo ao longo da vida." Um problema que também não é exclusivo das doenças raras, diz..Atualmente, explica o investigador, já estão estipulados quais são os dados mínimos para os registos, o que já foi validado pelos clínicos. E a partir de agora cabe aos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde encontrar, "sem fazer perder muito tempo aos clínicos, uma forma "quase automática para ir ao processo clínico eletrónico dos doentes e captar de lá informação para alimentar o registo"..Nesta matéria, "estamos muito atrasados" em relação a países como Itália e França, onde "já se está na fase de federar os registos nacionais a nível europeu"..E há mais obstáculos a enfrentar que se prendem com a privacidade dos doentes. "Ainda temos de negociar com a Comissão Nacional de Proteção de Dados qual vai ser a melhor forma, respeitando o atual regulamento que entrou em vigor do ano passado, de conseguir que os dados passem do processo clínico de cada hospital para um registo que vai ser central.".Doentes a uma só voz.Existem duas estruturas agregadoras de doentes com doenças raras em Portugal, a Aliança e a Federação das Doenças Raras de Portugal (FEDRA), mas em breve vai passar a existir um só organismo. "Cada uma das estruturas tem cerca de um terço dos doentes e outro terço, ou talvez mais, não pertence a nenhuma delas. É algo que nos preocupa há muito tempo. Não faz sentido porque somos um país muito pequeno. Os doentes raros têm força se se unirem", afirma Marta Jacinto, da Aliança..Foi criada a Comissão Instaladora da nova organização agregadora de Associações de Doenças Raras, edepois será feita a extinção das duas estruturas existentes, passando os doentes a "falar" a uma só voz. A nova estrutura agregadora irá representar, através das associações existentes, "as necessidades de todos os doentes com doenças raras em Portugal"..Uma união que vai permitir reforçar a divulgação e a proteção das pessoas diagnosticadas com doenças raras. "As principais vantagens verificam-se, sobretudo, na capacidade de representação em número, em especial nas áreas em que seja necessário definir novas políticas para o setor. Cada associação de doenças raras representa poucos doentes devido à própria natureza das doenças e muitas das dificuldades são transversais às várias doenças raras", explica a comissão instaladora, cujo trabalho começa a ser visível nesta quinta-feira, Dia Mundial das Doenças Raras, com a realização de uma conferência no Instituto de Saúde Pública Dr. Ricardo Jorge. Uma conferência que é considerada "um marco histórico para as associações de doenças raras em Portugal".