Jesus Cristo entra em força na campanha de Bolsonaro

Com o segmento cristão conservador a aproximar-se, segundo as sondagens, de Lula da Silva, a propaganda bolsonarista aumenta memes onde o atual presidente é retratado como um ungido por Deus
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O slogan de campanha de Jair Bolsonaro (PL) nas eleições de 2018 já foi "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos" numa tentativa, bem-sucedida nas urnas, de fundir política e religião em torno de um candidato cujo nome do meio, Messias, foi também amplamente explorado. A vantagem acentuada do rival Lula da Silva (PT) na pré-campanha de 2022, entretanto, tem levado o campo do atual presidente a dobrar a aposta - Jesus Cristo entrou de vez e em força na propaganda bolsonarista nas últimas semanas.

Logo no início do ano, fez furor uma imagem de Bolsonaro, a recuperar-se no hospital após internação por não ter mastigado corretamente um camarão nas férias, com Jesus Cristo a levá-lo pela mão. O meme comoveu até a atriz e ex-secretária da Cultura Regina Duarte - "me disseram que é fake mas eu não acreditei, para mim é vero", opinou. Antonio Tabet, humorista do coletivo Porta dos Fundos, parodiou, dizendo que não só era verdadeiro como Jesus Cristo, muito maior do que Bolsonaro na imagem, fora pivô (poste) dos Los Angeles Lakers.

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Há duas semanas, em visita ao Nordeste por ocasião de obras na transposição do Rio São Francisco, Bolsonaro atacou Lula em discurso. Para aquecer a plateia, José Amazan, prefeito de Jardim do Seridó, tocou à sanfona um tema de sua autoria com o refrão "o senhor fez a vida renascer/Igualmente aconteceu em Israel/Para brotar água, leite, pão e mel/Precisava de Messias para fazer". A transposição daquele rio é um projeto do século XIX que saiu do papel apenas em 2007, na gestão de Lula, mas que ainda não foi concluído.

Finalmente, dias antes da criticada viagem à Rússia, Bolsonaro e Jesus Cristo surgem juntos novamente numa imagem que se tornou viral. "Vá e impeça a guerra, Jair", diz o profeta de Nazaré, Galileia, ao presidente de Glicério, São Paulo. No seu discurso oficial depois do encontro com Putin, Bolsonaro aproveitou o embalo - "mantivemos a nossa agenda [visitar a Rússia] e, por coincidência, ou não, parte das tropas deixaram as fronteiras..."

Ao DN, Christina Vital, professora universitária especialista no estudo dos evangélicos, diz que as imagens a circular sobre a visita à Rússia "são uma reação ao desacordo de setores muito diversos da sociedade em relação à viagem". "Como era impossível sustentá-la do ponto de vista estratégico, económica ou politicamente, pessoas isoladas começaram então a replicar imagens de Bolsonaro junto a imagens de Cristo", diz.

"É difícil medir os efeitos desta propaganda enganosa agora. O que podemos dizer é que se trata de mais uma tentativa desesperada de campanha de Bolsonaro diante da inquestionável desaprovação de seu governo em todos os segmentos sociais, inclusive, cristãos, os evangélicos e os católicos, vale aliás lembrar que inúmeros religiosos se estão insurgindo contra esse tipo de uso da imagem de Cristo pela base profissional de apoio a Bolsonaro".

Fábio Py, teólogo protestante evangélico e professor universitário, é dos mais críticos. "O maquinário do bolsonarismo tenta justificar teologicamente a viagem (...) para isso, opera-se uma descrição densa do presidente como messias, abençoado por Jesus para apaziguar a iminente peleja", escreveu no site Midia Ninja.

"O cristofascismo", continua Py, recorrendo a termo da teóloga alemã Dorothee Sölle para se referir às relações entre o partido nazi e as igrejas cristãs no Terceiro Reich, "passa a ter outros contornos". "Não está apenas no âmbito nacional, mas internacionalista. Afinal, foi designado por Jesus para intermediar uma questão da geopolítica mundial (...) a iconografia ultraconservadora conota que Bolsonaro não é apenas o messias do Brasil, mas um messias mundial, planetário", remata.

Flávio Sofiati, especialista em igreja católica da Universidade de Goiás, lembra ao DN que "o uso da imagem de Jesus é algo recorrente na história do país, mas com contornos específicos na atualidade face ao caráter da presença evangélica pentecostal no espaço público".

"Política e religião costumam andar juntas no mundo, incluindo no Brasil, onde havia religião oficial, no período colonial e do império, discriminação positiva do catolicismo e negativa das religiões de matrizes africanas durante todo o século XX, e, mais recentemente, protagonismo evangélico".

"A novidade", sublinha, "é que com os evangélicos pentecostais (IURD, Assembleia de Deus, entre outros), há uma afinidade muito grande entre a perspectiva teológica e o capitalismo liberal, a prática evangélica na política é pragmática, em defesa das suas igrejas, que funcionam como negócios num crescente e diversificado mercado de bens de salvação".

Para Sofiati, "por sua vez, a igreja católica, na sua fragmentação, reage de maneiras muito diferentes a esse uso da imagem de Jesus por Bolsonaro porque se há setores que se aproximam da prática pentecostal, como a Renovação Carismática Cristã, também há setores que se distanciam, como o Cristianismo da Libertação".

Vinícius Vieira, cientista político da Fundação Armando Álvares Penteado, destaca que "depois de 71% dos evangélicos terem votado em Bolsonaro na segunda volta de 2018, os principais institutos de sondagens dizem que em 2022 Lula empata com ele no segmento, sobretudo por razões económicas". "Por isso, nada melhor do que apelar aos mais profundos sentimentos desse estrato".

"Já na outra eleição, só o facto de ele ter Messias como nome do meio serviu para o anunciar como o escolhido que ia tirar o Brasil da depravação comunista, nomeadamente das políticas de género, dos direitos LGBT, do sexo na TV, hoje, como esse discurso já não cola tanto, a ideia é colocá-lo como predestinado para tudo aquilo em que se envolve, daí os memes de que ele tem proteção divina, ancorada na sobrevivência do atentado à faca, e aqueles, recentes, em que ele evitou a terceira guerra mundial".

O uso de Jesus como propaganda presidencial é inédito, segundo o académico. "Na história do Brasil, temos proximidades entre figuras religiosas, notadamente católicas, e políticos a um nível regional, e, entre os presidentes, Getúlio Vargas fez de Nossa Senhora Aparecida a santa padroeira do país mas nenhum outro tinha ousado se associar à figura de Jesus Cristo como Bolsonaro - isso é inédito".

Os principais rivais de Bolsonaro na corrida ao Planalto, marcada para dia 2 de outubro, também tentam se aproximar dos cristãos evangélicos, hoje em torno de 30% da população.

"No passado, o povo da igreja era apenas orientado antes de ir à urna, hoje é manipulado", disse Paulo Marcelo Schallenberger, o pastor encarregado de fazer a ponte entre Lula e os evangélicos, ao jornal Correio Braziliense. E Geraldo Alckmin não foi escolhido pelo antigo presidente como seu candidato a vice por acaso. "O governador de São Paulo por quatro mandatos teve uma abertura com as igrejas evangélicas incrível", diz Schallenberger.

O ex-ministro Sergio Moro (Podemos), por outro lado, divulgou uma Carta de Princípios aos Cristãos na semana passada e Ciro Gomes (PDT) desde junho do ano passado que se faz acompanhar de uma Bíblia e de um Constituição nas suas comunicações.

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