Jesuítas abrem nova casa em Lisboa: um centro cultural no Bairro Alto

Já foi o Palácio dos Condes de Tomar, depois Hemeroteca - biblioteca municipal - e agora será a nova casa da <em>Brotéria</em> - a revista da Companhia de Jesus, com 117 anos. Um projeto que os jesuítas amadureceram durante 30 anos e que só agora foi possível concretizar.
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Francisco Mota tem 35 anos. É jesuíta há 15 e padre há três. Formou-se em Direito, depois em Filosofia, com mestrados em ciência política e teoria moral. Foi professor universitário no seminário e agora é diretor-geral da Brotéria - revista de sciencias naturaes, fundada em 1902, que se destacou pelas publicações científicas na área da botânica, zoologia e genética.

Hoje a Brotéria muda de rosto e não viverá só do papel, sai de si própria para se abrir à comunidade, para se tornar o Centro Cultural dos Jesuítas, um espaço que querem de porta aberta para o diálogo e para o encontro com as várias culturas urbanas, através de exposições, debates, conferências, arte, investigação e tecnologia.

Como explica o padre Francisco, é também uma forma "muito concreta de fazer Igreja e que tem muito que ver com a identidade jesuítica". No fundo, a Brotéria - Centro Cultura dos Jesuítas - passa a ser também a resposta dos jesuítas em Portugal às diretrizes e à linguagem introduzida pelo Papa Francisco no seu pontificado: diálogo, encontro, proximidade, identidade.

Mas o projeto de evolução da Brotéria, fundada por três padres - Joaquim da Silva Tavares, Cândido de Azevedo Mendes e Carlos Zimmermann, professores de Ciências Naturais do Colégio de São Fiel, em Castelo Branco, em honra do reconhecido padre botânico naturalista Félix de Avelar Brotero -, nem sempre esteve pensado desta forma. Se agora surge como centro cultural é também porque o espaço assim o exige.

A revista - que teve sempre importância cientifica e que hoje regista mais de 1300 artigos publicados - continuará a existir no formato de papel, mas a verdade é que os tempos a obrigaram a evoluir, a adaptar-se às necessidades da comunidade, às novas formas de comunicar, à exigência da proximidade para ouvir os outros, sem barreiras e sem eliminar as diferenças.

Por isso, "queremos que seja um espaço genuíno e verdadeiramente de encontro, onde não se eliminam as diferenças. Queremos ouvir honestamente os outros, criar a cultura do que se pensa e isso só pode ser feito em parceria, sempre com alguém que trabalhe connosco ", explicou ao DN Francisco Mota, no dia em que a Companhia de Jesus, numa cerimónia oficial, receberá da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a chave do antigo Palácio dos Condes de Tomar e da antiga Hemeroteca.

Esta chave tem um contrato de cedência e arrendamento de 25 anos, quase tantos quanto o projeto levou a sair da ideia, do papel, à realização. "Os jesuítas gostam de garantir que não se enganam", remata a rir. "Foram 30 anos para o projeto amadurecer, lidar com obstáculos e encontrar o espaço próprio para o desenvolver".

Várias hipóteses para o mesmo projeto

Antes de chegar ao Bairro Alto, a instalação desta tentativa de levar a Brotéria até à comunidade, à sociedade, mais aberta ao diálogo, já esteve pensada para o Lumiar, no Colégio São João de Brito, depois para a Alta de Lisboa, num espaço que seria cedido pela autarquia, para o Largo da Trindade, também para um espaço da Santa Casa de Lisboa, mas finalmente chegou a hipótese de ocupar um edifício emblemático para a cidade e que fez mudar ainda mais o projeto, tornando-o mais exigente. Talvez o tempo certo para responder às novas necessidades da sociedade, para estar de porta aberta mesmo no coração da cidade, na Rua de São Roque, em frente à Santa Casa, onde hoje passam tantos de culturas diferentes.

O diretor-geral da Brotéria confirma: "Nestes 30 anos houve momentos de silêncio, de obstáculos, mas foi o tempo necessário para se maturar o projeto e poder concretizá-lo". Francisco Mota conta que desde há meses no velho palacete da Lapa os oito padres que ali vivem não fazem oura coisa senão encaixotar, guardar, recordar. Foi num destes momentos que encontrou uma carta datada da década de 1980, em que se percebe que o provincial da altura levou a sério este novo projeto para a Brotéria pedindo aos padres que pensem e maturem o projeto para não cometerem erros na decisão.

A carta encontrada era o memorial deixado pelo provincial da companhia aos Jesuítas, após a sua visita anual a todas as casas. Na altura, foi o que fizeram os padres, e como diz Francisco: "Houve uns dez anos de silêncio". Depois, a revista voltou a ser repensada e quando foi encontrado este espaço, então houve que repensar ainda mais o projeto e adaptá-lo à importância do edifício, à imponência da sua história. "Exigiu ainda mais de nós. Obrigou-nos a ser arrojados e a dar uma utilização ao edifício que também seja especial, porque ele próprio é um edifício emblemático na cidade e para a história da cidade."

160 mil livros mudam de casa

As obras levaram dois anos até estarem concluídas e para ali vão mudar-se os 160 mil livros que fazem parte da biblioteca da companhia, obras de arte e os padres jesuítas ligados ao projeto - Francisco Mota, António Júlio Trigueiros, Manuel Cardoso, Vasco Pinto Magalhães, João Norton de Matos e João Sarmento. Hoje todos eles estiveram no número 3 da Rua de São Roque para receber a chave numa cerimónia que contará com a presença do provedor da Santa Casa de Lisboa, Edmundo Martinho, o provincial dos Jesuítas em Portugal, P. José Frazão Correia, e o Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente.

As portas ao público só abrirão em janeiro de 2020. Até lá, o tempo será necessário para "voltar a serenar e olhar para a programação". A ideia no primeiro ano é não avançar com atividades temáticas, pois "considerámos que o mais importante nesse ano será mostrar quem nós somos e não tanto o que vamos fazer. Queremos mostrar como a Fé Cristã se pode encontrar com as culturas urbanas, queremos ouvir honestamente os outros e estar ligados ao que os outros têm para nos dizer".

No fundo, a linguagem que o Papa Francisco tem pedido à Igreja, uma linguagem que para os jesuítas é fácil de entender. "Falamos a mesma linguagem, por isso é fácil entender o que o Papa está a pedir à Igreja". O projeto Brotéria surge por isso, neste espaço, no coração da cidade, para estar mais próximo das comunidades, um espaço onde todos "poderão entrar", e onde se pretende falar a linguagem das pessoas, explicando, debatendo, ensinando e aprendendo uns com os outros.



"Acreditamos que a relevância da Brotéria enquanto agente cultural depende de uma atenção constante à realidade urbana, a partir de uma multiplicidade de ângulos, sempre cimentados em cinco vertentes de atividade: investigação, diálogos, comunicação, espiritualidade e galeria. Para que isto aconteça, temos um grupo de pessoas a que chamamos Observatório, que reúne com regularidade para auscultar a realidade. Precisamos de ir alimentando uma reflexão conjunta que garanta a vitalidade, a relevância e a organicidade de toda a atividade promovida pela Brotéria. Depois é a partir deste olhar coletivo e plural que resultam novas iniciativas e de onde saem os temas explorados na programação. Cada tema é isto: um processo de pesquisa e reflexão integrada, dinâmica e coletiva que toma partido do caráter multidisciplinar do centro e da programação para procurar possíveis caminhos para a pergunta inicial trazida pelo exercício da auscultação da realidade", explica Francisco Mota.

O diretor da Brotéria destaca ainda que a nova casa dos Jesuítas é composta por um espaço que inclui galeria, livraria, cafetaria com pátio e salas para debates, conferências ou encontros, entre as quais se destacam dois grandes salões, ambos com tetos trabalhados e capacidade para 80 pessoas cada, e a Sala dos Couros, o ex-líbris do edifício, com paredes totalmente forradas a couro trabalhado.

Mas o objetivo mesmo é abrir à comunidade um espaço que seja de encontro intercultural, desde a investigação ao debate, da arte à espiritualidade, passando pela comunicação digital e em papel. "Um espaço onde a cultura não seja multifacetada e em que o diálogo seja plural, inteligente e criativo".

Na cerimónia, o Provincial dos jesuítas, padre José Frazão Correia, referiu que a entrega das chaves do Palácio Condes de Tomar pela Misericórdia "acontece no mesmo dia em que em 1553 os jesuítas saíram do Coleginho para habitar em São Roque". Por isso, a abertura deste centro cultural naquele edifício e naquela zona é também uma espécie de regresso às origens.

D. Manuel Clemente sublinhou o facto de este centro abrir numa altura em que a cidade de Lisboa é, cada vez mais, "habitada por múltiplas culturas, contendo, atualmente 100 nacionalidades diferentes". O desafio, referiu, "é ultrapassar a multiculturalidade e passar para a interculturalidade onde cada um possa oferecer aquilo que transporta. A interculturalidade é criar uma coisa que é um campo aberto. Este é um bom lugar para forjar o futuro".

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