Será que o fantasma de Bette Davis (1908-1989) reencarnou em Jessica Chastain? Ao vermos Miss Sloane (estreia-se amanhã), a pergunta adquire um sugestivo simbolismo. A personagem de Chastain - Elizabeth Sloane, uma figura de maquiavélica inteligência dos lobbies da cena política de Washington - parece reeditar para os espectadores do século XXI esse movimento de sedução e perversidade que Davis encarnou em clássicos como Jezebel, a Insubmissa (William Wyler, 1939) ou Eva (Joseph L. Mankiewicz, 1950)..No seu misto de luminosidade e negrume, a performance de Chastain envolve qualquer coisa de radical, a colocar a par dos momentos mais altos da sua carreira em títulos como A Árvore da Vida (Terrence Malick, 2011), 00:30 A Hora Negra (Kathryn Bigelow, 2012) ou Miss Julie (Liv Ullmann, 2014)..A atriz convoca-nos através de um cliché automaticamente reconhecível: a mulher poderosa no interior de uma selva dominada por personagens e valores masculinos (daí resulta, aliás, o não muito feliz subtítulo português: Uma Mulher de Armas). A pouco e pouco, faz-nos ver que qualquer dicotomia masculino/feminino será insuficiente para compreender a lógica interna daquele universo..Que está, então, em jogo? Uma questão de perturbante atualidade. A saber: de que modo as convulsões do mundo político são realmente geridas pelos seus protagonistas, ou apenas geradas por "consultores" e "agências" peritos na criação de aparências mais ou menos maliciosas? Mais ainda: até que ponto a ação de muitos políticos se foi reduzindo à administração dessas aparências?.Se acrescentarmos que o principal assunto que mobiliza Sloane é a legislação sobre o acesso dos cidadãos a armas de fogo, poderemos entender a sua redobrada atualidade. Realizado por John Madden (assinou, em 1998, o oscarizado A Paixão de Shakespeare), este é, afinal, um filme apostado em reavivar uma tradição narrativa em que o poder político não passa apenas pelas imagens (ou pelas plataformas audiovisuais, como agora se diz), mas também pelo valor primordial das palavras..Daí que seja fundamental destacar o brilhante argumento de Miss Sloane, por certo um dos melhores da produção de 2016. É seu autor um principiante, de nome Jonathan Perera, que começou por ser advogado - de origem britânica, tentou uma carreira de professor de Inglês na China e na Coreia do Sul, aí descobrindo o seu gosto de escrever... para cinema..Na sofisticada elegância com que trata os diálogos, Jonathan Perera parece ser um discípulo de Aaron Sorkin, criador da série Os Homens do Presidente (1999-2006), vencedor de um Óscar com o argumento de A Rede Social (David Fincher, 2010). Mais do que isso: na sua arte de expor as ambivalências do poder através da tragédia das palavras, Perera afirma-se como um herdeiro direto do teatro e do cinema de David Mamet. Se quisermos romancear tudo isto, podemos lembrar que, para rodar o filme Wild Salomé (2011), de e com Al Pacino, Chastain teve de desistir de uma hipótese de trabalho, em televisão, com... David Mamet. E também que, por esta altura, ela está a rodar Molly"s Game, escrito e dirigido por... Aaron Sorkin.