Jeff Cohen: "A vida em Lisboa é mais simples e isso atrai muitos estrangeiros"
A conversa teve lugar numa esplanada do Jardim da Estrela, num princípio de tarde quente de primavera. Um local que nos últimos anos se tornou o ponto de encontro de estrangeiros que vivem em Lisboa ou por cá têm casa onde passam temporadas. Jeff Cohen, 64 anos, faz parte destes últimos. O pianista, um dos mais conceituados da atualidade e que acompanha algumas das divas da música erudita, como Cecília Bartoli, Roberto Alagna, Angela Gheor-ghiu e Sumi Jo (que também vive por Lisboa) entre outros, descobriu a capital portuguesa muito antes de a cidade estar na moda. Ali perto da Bairro da Estrela, o norte-americano de Baltimore tem há anos a sua casa de Lisboa onde regressa várias vezes por ano para descansar das tournées e do seu dia a dia de Paris, onde vive regularmente.
Mas nem sempre a relação foi de ócio e pausa, a ligação a Portugal levou-o a gravar um disco de fados (Quando Lisboa Acontece, 2005, com a atriz e cantora Luísa Cruz) e a desdobrar-se em múltiplas colaborações com artistas portugueses, de Luís Madureira, a Ricardo Pais, de Fernanda Lapa a Teresa Gafeira.
Por França teve, durante vários anos, um programa de televisão para crianças sobre música, Jeff d"Orchestre ,e além das divas anteriormente mencionadas, colaborou de perto com Jane Birkin, June Anderson e Ute Lemper. É autor de várias bandas sonoras e em 2019 recebeu a distinção de Commandeur des Arts e des Lettres pelo governo francês.
Atualmente tem agendados vários concertos pelo mundo - que estão a regressar no pós-pandemia, ocupa-se também com o ensino de piano no Conservatório Nacional Francês e, sempre que pode, vem ver o sol e escutar os sons de Lisboa.
Como é que o piano entra na sua vida?
Em casa dos meus pais, em Baltimore, nos Estados Unidos, tínhamos um piano e a minha mãe tocava como hobby. Acho que eu devo ter começado a tocar algures e a partir dos 5 anos comecei a estudar. Por sua vez, o meu pai tinha o sonho de fazer teatro, mas como teve de trabalhar a ajudar o meu avô na sua loja de roupa, no final da Segunda Guerra Mundial, foi fazendo peças em companhias amadoras. Mas sempre quis que eu, e os meus irmãos -, somos quatro -, fizéssemos teatro. E desde os meus 7 anos que trabalhei numa companhia de teatro amadora a fazer comédias musicais. E lá tínhamos de fazer tudo, desde desenhar a carregar os cenários. Foi uma boa formação para o resto da vida. Mais tarde tive professores fantásticos numa escola de música em Baltimore muito conceituada, o Peabody Institute. Eram fantásticos mas, apesar disso, todos os dias pensava que não era aquilo que queria fazer, queria era seguir linguística. O que acabei por fazer em paralelo com o estudo do piano. Depois tirei um ano sabático e fui para Paris. E por lá inscrevi-me no Conservatório em Paris, que era gratuito, o que para um norte-americano era uma coisa fantástica na altura. Assim, fiquei três anos em Paris e tirei um diploma. Mas como achei o ensino em Paris, na altura, muito conservador voltei para os EUA.
Como foi o regresso aos EUA depois de três anos na Europa?
Quando regressei aos EUA quis voltar à minha escola (Peabody Institute) para tirar um mestrado. Mas na altura não aceitavam nenhum diploma feito na Europa. Fiquei furioso, tratei de arranjar um diploma numa universidade em Nova Iorque pela minha experiência e fiquei com uma licenciatura em Ciências para concorrer ao tal programa de mestrado na Peabody. E, finalmente, no ano escolar seguinte um pianista fantástico, Leon Fleisher, que morreu recentemente, aceitou a minha candidatura. Mas depois daquele trabalho todo entrei na escola e percebi que Baltimore era uma cidade muito pequena e provincial, decidi que tinha de me ir embora [risos]. Contudo, fui conhecendo algumas pessoas que me diziam que não devia deixar de tocar. Aconselharam-me a tirar um curso com um pianista fantástico, Peter Feuchtwanger, que também já morreu, e isso mudou a minha vida. Ele tinha uma forma diferente de ensinar, dizia que se tinha uma voz quando se estava ao piano. Por isso fui para Londres durante um ano, quase sem dinheiro e quase sem nada para vestir, para ter aulas com ele. Mais tarde ofereceu-me uma bolsa de estudo e convenceu-me a ficar. Mas no verão desse ano, em 1981, a convite de um amigo voltei para Paris para fazer uma banda sonora do filme Qu"est-ce qu"on attend pour être heureux!, da realizadora francesa Coline Serreau. E durante esse trabalho conheci muita gente ligada à música que me convenceu a dar aulas de piano, o que acabei por fazer e ainda hoje faço.
Citaçãocitacao"A minha primeira visita a Portugal foi uma semana antes do incêndio do Chiado. Lembro-me perfeitamente de uma semana depois, já em Paris, ler no Le Monde o que tinha acontecido."
E no meio dessas viagens como entra Portugal na sua vida?
A minha primeira visita a Portugal foi uma semana antes do incêndio do Chiado. Lembro-me perfeitamente de uma semana depois, já em Paris, ler no Le Monde o que tinha acontecido. Mas ainda conheci o Chiado antes do incêndio. Vim por causa do festival no Convento dos Capuchos, na Caparica, que se realizava todos os verões nessa altura, foi em 1988, a convite do diretor do festival da altura, José Tacanho (que foi diretor do festival de 1981 a 2001), vim tocar com uma cantora francesa, Hélène Delavault.
Era um país diferente...
Sim, diferente do que é agora. Via-se que era um país pobre, tudo parecia estar a ruir, era melancólico e triste, mas ao mesmo tempo muito bonito. Mas depois do festival dos Capuchos regressei mais tarde a Lisboa com a cantora Ute Lemper. E depois voltei com o encenador Peter Brook ,em 1992, para uma peça no Convento do Beato. Na altura o José Tacanho apresentou-me o Luís Madureira, que também vive aqui perto do Jardim da Estrela, e o Luís tornou-se um dos meus melhores amigos. Fizemos vários projetos, desde a abertura do CCB, a um disco em que ele cantou músicas de Boris Vian. Ele conhece quase toda a gente no mundo artístico e musical português e apresentou-me o Ricardo Pais, que estava à frente do Teatro Nacional de São João que por sua vez me convidou para fazer projetos musicais e fiz a minha primeira produção por cá. Foi no Porto, no projeto Linha Curva, Linha Turva e foi onde conhecei a atriz Luísa Cruz com quem mais tarde fiz um disco de fado, e em vários projetos com o Luís Madureira. E desde há uns anos que tenho cá casa. Acho que a vida em Lisboa é mais simples e isso atrai muitos estrangeiros, especialmente os franceses, que continuam a escolher a cidade para viver. Mas foi incrível conhecer Lisboa nessa altura.
E agora, com casa por Lisboa, vem cá muitas vezes...
Sim, venho cá várias vezes por ano. Mas agora é diferente, na altura vinha cá em trabalho, conheci gente fantástica, trabalhei com o João Grosso, António Lagarto, tive a sorte de conhecer essa gente toda. E também com a Fernanda Lapa, com quem trabalhei a música da peça A Mais Velha Profissão do Mundo. Há uma história curiosa: a certa altura quando quis comprar a casa em Lisboa, o que acabei por fazer, fi-lo a uma rapariga portuguesa. Mais tarde e depois de todo o processo burocrático soube que era sobrinha da atriz Glória de Matos que entrava nessa mesma peça da Fernanda [Lapa]. Uma grande coincidência. As amizades em Portugal são diferentes do que são em França. Continuo em contacto com a maioria das pessoas com quem trabalhei por cá e quando os vejo é uma festa, é sempre bom. Em França há uma maior distância entre as pessoas. Uma das coisas que me toca mais em Portugal é a importância que se dá à família, aos mais velhos e às crianças, o que infelizmente já não acontece em Paris.
A vivência e a troca criativa que teve, e tem, das temporadas que passa em Lisboa, influenciam de alguma forma o seu trabalho?
Sim, sem dúvida. Aliás, o disco que gravei com a Luísa Cruz em 2005 foi de fado, porque quis perceber a música. A Luísa [Cruz] cantou fado tradicional e eu acompanhei ao piano. O projeto começou por uns fados que fiz para uma peça do Ricardo Pais e depois evoluiu para um disco. Quisemos fazer uma espécie de World Music revisitada. Houve quem gostasse e quem não gostasse, mas é normal, nessa altura o fado era uma coisa intocável, um pouco como as músicas de Edith Piaf em França, que durante anos ninguém podia tocar. Agora tenho vindo sobretudo para trabalhar com a Gulbenkian.
Lisboa tem um som para si?
Sim, o fado! A ideia de existir um som que vem de uma cidade é algo quase bizarro para mim, e acho que não existe em mais lado nenhum. Sim, também há o fado de Coimbra, mas é diferente. Quando explico isso a franceses ou a norte-americanos ficam incrédulos. Quando vim cá as primeiras vezes, os portugueses ainda não tinham noção do incrível que é a cultura portuguesa. Hoje em dia já é diferente. E, em França, a perceção da cultura portuguesa também mudou. Antes perguntava e só me falavam de Manoel de Oliveira e pouco mais. Lembro-me de um dia ter procurado por livros de Gil Vicente em França, numa loja muito conhecida que é especializada em literatura de teatro, mas não conheciam, quando expliquei quem era aconselharam-me a procurar na secção espanhola [risos].
E trabalhou com nomes como Jane Birkin, Cecilia Bartoli, Ute Lemper, Sumi Jo...
Foi uma honra e, hoje em dia, quando olho para trás vejo que trabalhei com todos estes nomes porque essas pessoas confiaram no meu trabalho e no meu valor, mas tenho de dizer que, na altura, não via assim, era mais tímido. Ainda continuo a tocar com a Sumi Jo, que também tem casa em Lisboa e passa cá grandes temporadas. Só depois de anos e anos a trabalhar descobrimos que as nossas casas de Lisboa estão a escassos 300 metros de distância. Atualmente, estamos a tentar remarcar os concertos que não aconteceram por causa da pandemia.
Há planos para voltar a tocar em Portugal?
Para tocar infelizmente ainda não. Agora venho em breve para para dar uma ajuda com o coro da Gulbenkian, mas não vou tocar. Mas tenho muitas saudades de o fazer.