Jane, Charlotte e os outros
Programado para o dia de abertura do Doclisboa (Culturgest, dia 21, 21h30), Jane by Charlotte será repetido na fase final do festival (Culturgest, dia 30, 14h30). O mínimo que se pode dizer é que se trata de um exemplo extremo de uma tendência, que é também uma moda, que tem marcado algum documentarismo contemporâneo. A saber: a partilha confessional de experiências pessoais, ora em tom de controlada exposição, ora cedendo à mediocridade existencial da "reality TV" e seus derivados.
Estamos, deste vez, perante um belo exercício de exposição, justamente, e também de metódico pudor. E não será necessário sublinhar que o desafio é tanto mais delicado quanto se trata de filmar o encontro de uma mãe e da sua filha, de seu nome, respetivamente, Jane Birkin e Charlotte Gainsbourg.
Charlotte é a realizadora, definindo o projeto a partir de uma interrogação formulada no primeiro diálogo entre mãe e filha. Questão das mais íntimas e também das mais difíceis de responder: porque é que, desde a infância de Charlotte, entre elas persistiu uma distância intrigante, feita de gestos suspensos e regras de distanciamento? Na sua assumida estrutura de home movie, sujeito aos mais diversos percalços técnicos e descritivos, Jane by Charlotte organiza-se como uma antologia de respostas a tal pergunta.
Escusado será dizer que a memória do pai de Charlotte, Serge Gainsbourg (1928-1991), pontua toda esta teia de memórias, sem esquecer, claro, que tanto ela como a mãe, são também autoras de importantes discografias - encontramos mesmo registos dos bastidores de um concerto de ambas em Nova Iorque. O certo é que Jane by Charlotte está muito longe de ser um inventário de canções, prevalecendo a tentativa, de uma só vez afetiva e biográfica, de esclarecer como as personagens envolvidas definiram uma família peculiar, naturalmente sem equivalente com qualquer outra paisagem familiar.
O filme é relativamente breve (89 minutos), mas integra duas cenas que se distinguem, antes do mais, pela duração mais longa, ou com uma carga emocional que lhes confere um maior peso dramático: primeiro, a visita à casa onde viveram com Serge, dir-se-ia um museu familiar que o tempo não maculou; depois, os momentos em que Charlotte confronta a mãe com os filmes de infância das filhas (Kate, do casamento com John Barry, falecida aos 46 anos, e a própria Charlotte), até que Jane pede para não ver mais...
Jane by Charlotte é um filme sobre essa aproximação de memórias cuja vibração exige, por vezes, que fechemos os olhos, deixando, por momentos, que o silêncio prevaleça sobre os ecos do passado. Até porque Jane Birkin se reconhece como uma viciada nas memórias, incapaz de deitar fora os objectos mais bizarros e inúteis... Em boa verdade, aquilo que chamamos passado é apenas uma forma específica do presente.
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