Jack London em tom de fábula política

Um clássico do americano Jack London foi adaptado pelo cineasta italiano Pietro Marcello: "Martin Eden" é o retrato íntimo de um candidato a escritor, numa composição de Luca Marinelli premiada no Festival de Veneza.
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Como adaptar ao cinema, em pleno século XXI, o clássico Martin Eden, do americano Jack London? Sem esquecer, claro, que o romance de London, publicado em 1909, reflete uma conjuntura histórica muito específica em que o protagonista, um homem das classes mais pobres que ambiciona ser escritor, se descobre numa dramática encruzilhada ideológica e política. Ou seja, esquematizando: entre a militância por uma nova sociedade comandada pelos trabalhadores (faltavam oito anos para a Revolução Russa) e um radical apelo individualista.

O mínimo que se pode dizer do filme Martin Eden, realizado pelo italiano Pietro Marcello, é que corre os riscos de uma adaptação que se apresenta, sobretudo, como uma "transposição". Entenda-se: tudo se passa numa época claramente posterior, relativamente próxima dos nossos dias. Ou ainda: o calendário da ação define-se de modo deliberadamente ambíguo, uma vez que Marcello utiliza elementos díspares de "reconstituição", por exemplo nos objetos caseiros e no guarda-roupa (ou até na irónica seleção de canções na banda sonora, incluindo Salut, um sucesso de Joe Dassin lançado em 1975), elementos que parecem querer colocar o filme no território de uma fábula política... para além do tempo.

O resultado tem tanto de sedutor como de frustrante. Por um lado, somos envolvidos na demanda existencial de uma personagem fascinante, e tanto mais quanto a trajetória de Martin Eden, procurando encontrar a verdade interior da sua escrita, se apresenta indissociável da paixão por Elena (Ruth no livro de London), uma jovem da burguesia; por outro lado, a "indefinição" temporal do filme, à força de querer ser simbólica e universal, instala uma arbitrariedade francamente desmotivadora.

O filme tem a seu favor uma sólida galeria de atores, com obrigatório destaque para Luca Marinelli, no papel de Martin Eden - tínhamo-lo visto, por exemplo, em A Grande Beleza (2013), de Paolo Sorrentino; esta sua composição valeu-lhe um prémio de interpretação no Festival de Veneza de 2019. O certo é que as escolhas narrativas acabam por colocar a ação numa "terra de ninguém" que põe em causa a mais básica consistência psicológica das personagens. O capítulo final, em que Martin Eden vive as atribulações de um sucesso que não desejou, além de introduzido de forma precipitada, corre mesmo o risco de reduzir o drama a elementos involuntariamente caricaturais. Pela positiva, fica uma evidência que convém não menosprezar. A saber: a persistência de uma produção italiana que, com altos e baixos, não desiste de revalorizar os modelos da sua herança clássica.

* * Com interesse

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