"Já recebemos 400 feridos, só uma pessoa morreu"

Em Zaporíjia o hospital militar é o primeiro a receber quem fica ferido na guerra. As condições enfrentadas pelo pessoal médico são precárias, mas a vontade de salvar vidas supera as dificuldades.
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O hospital Militar de Zaporíjia é o hospital da linha da frente dos feridos de guerra vindos dos territórios ocupados a sul onde o rasto de destruição é atroz, Mariupol, Berdyansk, Melitipol, assim como outras cidades menores como Polohy, Tokmak. "Todos os feridos passam por aqui", afirma ao DN o diretor do hospital, Viktor Pysanko.

"Desde 24 de fevereiro já recebemos 400 pessoas, só não conseguimos salvar uma", conta. Visivelmente cansado, mas muito calmo, Viktor explica como o seu hospital recebe a grande parte dos feridos de guerra. "Chegam aqui e são operados ao que precisam, há muitas amputações, infelizmente. Aqui são estabilizados e tratados inicialmente, depois passados alguns dias são distribuídos para outros hospitais da região de modo a termos as instalações sempre disponíveis e, também, para terem os cuidados continuados que estes exigem".

O hospital é precário e muito antigo, mas ninguém da equipa parece preocupado com isso ou desmotivado. Como afiança Ihor Okeksandrovych, anestesista. "O que preciso? De trabalhar, trabalhar, trabalhar, não faço outra coisa desde da invasão Russa", diz enquanto fuma um cigarro na sua pausa ao serviço. Ao mesmo tempo dá-me um rebuçado e sorri. "Sabe, nós já temos guerra há oito anos, estamos habituados, agora é pior porque é uma guerra global no país, mas as nossas equipas já estão muito habituadas a este tipo de ferimentos. Operamos aqui, mas estamos preparados para, se amanhã o hospital for bombardeado como aconteceu em Mariupol, operar a céu aberto. Enquanto aqui estivermos vamos trabalhar".

De seguida, mostra-me imagens do bloco operatório no seu telemóvel. São centenas de imagens de uma enorme dureza. Uma jovem de 14 anos ficou sem uma perna devido a ferimentos com shrapnel [uma munição de artilharia antipessoal], "acho que já foi encaminhada e agora está na Polónia", e continua a mostrar imagens: outro homem sem uma perna; uma criança de cinco anos com o rosto queimado ao colo da mãe com cortes no rosto; um jovem com a perna com furos causados por estilhaços; outro homem com cortes até ao osso da tíbia. Acredito que nenhum de nós está preparado para ver aquelas imagens, mas são parte das histórias destas pessoas que simplesmente foram apanhadas na destruição das suas casas ou foram atingidas na fuga nas operações de evacuação, que acontecem à margem dos corredores humanitários que nunca existiram.

"Os soldados russos não cumprem o que dizem, disparam sobre as caravanas, inclusive as organizadas pelas Cruz Vermelha com cerca de 100 carros civis de vidros tapados e que avançam numa viagem que devia demorar duas horas mas demorará até cinco dias", quem o afirma é o diretor da Cruz Vermelha de Zaporíjia, Vitaliy Tsybariev. Viktor acrescenta: "Uma das missões dos soldados russos é mostrar que estão a salvar ucranianos, por isso não abrem o corredor humanitário ucraniano para obrigar as pessoas a sair pela Rússia. Tenho informação que 400 mil pessoas saíram para a Rússia, muitas delas são obrigadas, há raptos, agressões".

Mais uma vez estes testemunhos só se tornam compreensíveis à luz das imagens que Ihor Okeksandrovych me mostrou. A maioria de nós nunca viveu ou testemunhou tamanha violência gratuita. "Temos ali a sala de operações com duas camas, e há mais três salas de operações, depois a unidade de cuidados intensivos com cinco camas que pode ser expandida até nove", explica Olena Ponomarenk, a cirurgiã diretora do bloco operatório. "Veja estes fragmentos com que os pacientes aqui chegam, são pedações de balas, metais de várias formas, que causam aqueles ferimentos. Existe uma grande variedade de ferimentos mas a equipa é muito treinada, a guerra de oito anos preparou-nos para isto", explica com fragmentos de metal sobre as suas mãos.

Vladyslav Derhaliuk, outro cirurgião conta que já tiveram de deslocar-se ao hospital pediátrico porque "a nossa equipa tem mais experiência nestes ferimentos". O diretor do hospital só teme que a sua máquina de tomografia computorizada deixe de funcionar, "é uma máquina alemã muito antiga, mais de 20 anos, se parar não sei o que fazer...". E deixa o apelo a outros hospitais da Europa e dos EUA: "Entrem em contacto pela página do Facebook do Hospital Militar de Zaporíjia".

Enquanto esperamos que um ferido chegue ao hospital, recebemos a notícia de que a ambulância avariou na estrada e que vai para outra unidade mais perto. Este hospital só não é o inferno porque aqui todos sabem o quão importante é seu trabalho e juram que o farão até poderem. Aqui sente-se amor no lugar que podia ser do desespero.

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