Isabel Allende, 75 anos, a saudação feliz ao inverno
A 8 de janeiro de 2016, no seu "retiro" de escrita em Sausalito, Califórnia, Estados Unidos da América, Isabel Allende deitou mãos à obra - preparava a sucessão para O Amante Japonês. Por outras palavras, a autora, chilena nascida no Peru (a 2 de agosto de 1942), cidadã norte-americana desde 2003, depois de já ter vivido década e meia no país, lançava as primeiras ideias e linhas para aquele que viria a ser o seu 22.º livro, Mas Allá del Invierno, mantendo uma impressionante cadência desde a fulgurante estreia, em 1982, ano em que percorreu os caminhos nem sempre radiosos da memória ao editar A Casa dos Espíritos, arranque tão impressionante que rendeu um filme capaz de juntar estrelas como Meryl Streep, Glenn Close, Jeremy Irons, Winona Ryder e Antonio Banderas, todas dirigidas por Bille August, com a particularidade de grande parte das rodagens ter decorrido em Lisboa e no Alentejo.
Nessa época, a proximidade da ditadura que derrubou Salvador Allende (primo do pai de Isabel) do exercício do poder no Chile era o principal fator de motivação para a escrita desta antiga funcionária da ONU, tendência que voltaria a manifestar-se em De Amor e de Sombra (1984), dando sequência a essa "limpeza de pele" face a um acontecimento que, pela primeira vez de forma involuntária, a obrigou a viver longe do seu país - de 1975 a 1988, a autora sentiu-se forçada a manter uma prudente distância do regime liderado por Pinochet, radicando-se na Venezuela. Antes, por causa das responsabilidades profissionais do pai, diplomata, Isabel nascera em Lima, capital do Peru, e vivera parte da infância na Bolívia.
Mais tarde, consagrada como escritora, passou largas temporadas na Europa, privilegiando países como a Bélgica e a Suíça. A escolha californiana partiu da relação com o advogado Willie Gordon, com quem se casou em 1988. Era o segundo matrimónio de Allende, depois de ter estado casada com o chileno Miguel Frias, de 1962 a 1987, ligação de que resultaram os dois filhos da escritora, Paula, nascida em 1963, e Nicolás, de 1967.
Curiosamente, a segunda rutura conjugal - em 2015 - esteve na base de Mas Allá del Invierno, ou Para além do Inverno, cuja edição portuguesa será lançada nas próximas semanas. Da mesma forma que a escritora voltou - e com confissão pública - a apaixonar-se aos 74 anos, admitindo que, em função da idade, foi agora muito mais rápida a provocar e definir a relação com um "senhor que não teve hipótese de fuga" (sic), recuperando assim na prática uma das dimensões essenciais da sua vida, as três personagens centrais do livro atravessam o "inverno" das contrariedades, multiplicadas pela fase Trump na sociedade norte-americana.
Segundo a escritora, "há uma emergência de todas aquelas coisas que se mantinham caladas, que existiam, mas que as pessoas não se atreviam a manifestar, de xenofobia, racismo, supremacia branca, misoginia", com óbvias responsabilidades do ocupante da Casa Branca. Puxando a questão da imigração para o centro das atenções, Allende estende a passadeira a uma chilena, a uma guatemalteca que permanece nos Estados Unidos em situação ilegal e a um veterano "nativo". Sendo o título inspirado na frase e na ideia de Albert Camus, que garante que é em pleno inverno que se descobre um verão "invencível", as três personagens vão enfrentar um enorme temporal em Nova Iorque e ver as suas vidas mudarem radicalmente em três dias.
A força dos números
Tal como aconteceu com muitos dos romances anteriores da chilena, as críticas dividem-se. Há quem enalteça o empenhamento e a fluidez da linguagem da autora, há quem insista nas limitações demonstradas, sobretudo no que toca aos enredos e à própria arquitetura das figuras, bem distantes de Clara e Ferula (as cunhadas de A Casa dos Espíritos), de Eva Luna (a omnipresente narradora e personagem de Eva Luna e Contos de Eva Luna, de 1987 e 1990, respetivamente) a Paula, que, como se sabe, não é uma criação de Allende, mas antes a filha hospitalizada e em coma a quem a escritora decide contar a história da família. A jovem acaba por morrer e Paula (1994) foi, com alguma naturalidade, pela situação-limite em que decorre, o livro de Isabel que mais reações suscitou aos leitores - e até hoje...
Isabel Allende sofreu alguns ataques rudes, até por parte de um ilustre compatriota, o malogrado Roberto Bolaño, que disse que chamar à autora de A Ilha debaixo do Mar "uma má escritora já é estar a promovê-la", uma vez que Isabel não será "uma escritora, mas uma escrevedora". Mais do que responder-lhes diretamente, prefere deixar que o contraponto possa chegar na ponta dos números: 67 milhões de exemplares vendidos dos seus 22 títulos, traduções concretizadas para nada menos de 35 idiomas.
Há, naturalmente, outro tipo de recompensas: desde 2004, ano seguinte ao da conquista da cidadania norte-americana, faz parte da Academia de Artes do país. Em 2014, foi condecorada por Barack Obama com a Medalha da Liberdade, a mais alta das distinções atribuídas a civis, nos Estados Unidos. Em 2010, tinha ganho o Prémio Nacional de Literatura do Chile, sendo apenas a quarta mulher a conquistar o galardão desde que este começou a ser atribuído, em 1942. Chega agora aos 75 anos, mas - como se viu - parece rejuvenescida pela descoberta de uma nova paixão que agita os seus 152 centímetros de altura e aviva os seus olhos escuros e profundos. Resta saber se hoje diria o mesmo que desabafou há cinco anos: "Para uma mulher vaidosa como eu, é muito complicado envelhecer neste nosso sistema cultural. Eu sinto-me charmosa, sedutora e sexy, mas ninguém vê isso. Sou invisível. E detesto ser invisível."