"Irá sempre haver racismo na América. O desafio é haver pessoas suficientes que digam que essa não é a América em que acreditam"

Primeiro afro-americano a liderar o Instituto Smithsonian, Lonnie G. Bunch III esteve em Portugal por iniciativa da Embaixada dos EUA, da Culturgest e do Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa. O historiador debateu com o público português os legados da escravatura e da colonização. Com o DN conversou ainda sobre o papel decisivo das escolas e dos museus para as novas gerações perceberem como o passado molda o presente.
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Qual é a memória da escravatura entre as novas gerações nos Estados Unidos, e sobretudo das comunidades que emigraram a partir de finais do século XIX? Por exemplo, jovens com uma ascendência asiática, ou europeia do sul, ou latino-americana têm conhecimento da escravatura nos EUA?
Houve uma grande mudança nos EUA na última década, no sentido de assegurar que todos os estudantes têm pelo menos uma introdução à escravatura. O desafio é que a maior parte do trabalho que tem sido feito permite às pessoas verem a escravatura como história antiga e não uma história que continua a formatar o país até hoje. Eu não estudei a escravatura na escola, mas as minhas filhas estudaram, por isso penso que estamos num mundo diferente. O meu desafio é ajudar as pessoas a compreenderem que a história da escravatura, em certos aspetos, é uma história que formata toda a gente, não só no passado, mas também hoje e no futuro.

Sei que é de New Jersey, mas as suas origens estão provavelmente no chamado sul profundo. Na sua família as origens e os antepassados são algo que está presente?
Há um sentimento generalizado de que a família veio do sul. Eu nunca tive uma conversa com a minha família sobre ter antepassados escravos. A única experiência que tive foi aos seis anos, quando me levaram ao sul para visitar familiares, e fui visitar um homem de idade que me assustou, lembro-me de que ele tinha umas mãos grandes que pousou em mim e no meu pai. Esqueci-me totalmente disso até que, 40 anos mais tarde, quando fazia uma pequena investigação sobre a minha família, descobri que ele era o meu bisavô e que tinha nascido escravo. Portanto, eu tinha sido tocado por alguém que tinha nascido escravo e não tive conhecimento disso. Penso que, de alguma forma, a maioria das famílias afro-americanas vêm de grupos com antepassados escravos e é uma coisa de que não querem falar. Preferem falar dos antepassados que foram reis e rainhas em África do que dizer que também tiveram familiares escravos.

Em relação à nova geração, quando diz que existe um esforço para explicar a escravatura, isso acontece em todas as escolas ou depende dos estados? Por exemplo, nos estados das Montanhas Rochosas, onde a escravatura não foi significativa, mesmo aí é um tema nas escolas?
Sim. Existe um esforço para que se fale sobre a escravatura em todos os estados dos EUA. A questão é com que profundidade isso é feito e se a questão não é vista como uma coisa que aconteceu há muito, muito tempo e que, portanto, não deveríamos estar a falar sobre ela hoje em dia. Há um debate sobre o tema. Cada estado toma as suas decisões, mas diria que não há nenhum onde exista uma criança a quem não tenha sido introduzido o tema, a questão é com que profundidade e com que intensidade.

Em relação especificamente ao Smithsonian e a este novo Museu Nacional da História e Cultura Afro-Americanas, pensa que tem um papel importante nesta área devido à quantidade de pessoas que visitam Washington e o Smithsonian?
Acho que sim. A construção deste museu levou 11 anos da minha vida e já teve 15 milhões de visitantes, o que é um número muito grande. Penso que é importante que este museu e o Smithsonian digam ao mundo que venha ver esta história importante que foi tantas vezes negligenciada. Pode haver gente que não queira conhecer a história, mas que vem ao Smithsonian porque quer ver história, a ciência, a arte e fica a conhecer porque, como tem a marca Smithsonian, confiam. Acho que tudo se resume a esta pergunta: como é que o Smithsonian ajuda as pessoas a conhecerem-se melhor, ajuda-as a compreender que a história tem que ver com o presente e o futuro, tanto como com o passado? Acho que é esse o papel que o museu e o Smithsonian desempenham.

Para si, como afro-americano e historiador, quando pensa na Declaração de Independência e em todas as contradições sobre o ideal de liberdade em relação às pessoas de cor, mulheres, nativos americanos, o que sente? E um jovem afro-americano, um estudante, como é que olha para Thomas Jefferson e George Washington? Como pais fundadores da democracia ou como pessoas cheias de contradições?
Penso que o que se espera é que as pessoas reconheçam as contradições. Estas não destroem o nosso entendimento das suas contribuições. Por exemplo, eu sempre defendi que o desafio na América é viver de acordo com os ideais que Jefferson escreveu; o desafio é como é que nós, através do protesto, do voto, de tudo isso, construímos a América que sonhámos. Portanto, penso que em muitos afro-americanos existe o questionamento de como é que ele pode ser o pai da liberdade se era dono de escravos? O que respondo normalmente é que é assim que conseguimos compreender quem eles eram, eles compreenderam o poder da liberdade porque viram pessoas sem ela. A esperança é de que os estudantes compreendam que eles tinham grandes ideais mas não viviam de acordo com eles. O nosso desafio como nação é conseguir chegar a esses ideais.

Há alguns heróis tradicionais da comunidade afro-americana, como Martin Luther King, por exemplo...
... ou Abraham Lincoln.

Claro, o presidente que acabou com a escravatura. Quem são realmente os heróis dos afro-americanos?
Penso que o que nós estamos a perceber agora é que há heróis como Frederick Douglass, Harriet Tubman, Martin Luther King, mas também outros que eram pessoas da comunidade local. Pessoas como a jovem Margaret Jones, que nos anos 50 levou os estudantes do ensino secundário a protestarem contra a segregação nas escolas, que não considerava justa. O seu ativismo levou a processos em tribunal que acabaram com a segregação. As pessoas estão agora a compreender que é importante conhecerem esses grandes nomes, mas que foram também as pessoas que viviam entre nós que levaram a todas as mudanças.

Sei que tem alguma proximidade com o antigo presidente Barack Obama. Obama é algo de único na história americana ou é apenas o princípio da integração total de todas as pessoas?
Essa é uma boa pergunta e para a qual gostaria de ter a resposta. Porque o que ainda vemos é muita gente a ser o primeiro ou a primeira - o primeiro afro-americano a tornar-se presidente. Portanto, até ao momento em que já não teremos de dizer que esta ou aquela foi a primeira teremos de continuar a lutar para viver de acordo com aqueles ideais. Eu diria que estamos num ponto em que ainda fico surpreendido, por vezes, quando abro um jornal e vejo uma notícia sobre a primeira mulher negra a fazer isto ou aquilo. Enquanto não passarmos esse ponto, penso que ainda temos muito mais para fazer como civilização.

Para si, a eleição de Obama foi uma surpresa? Outros políticos negros de destaque, como Colin Powell, não tentaram antes a candidatura por receio, como é sabido, até da própria mulher do general, Alma.
Sim. Eu conhecia Colin Powell, conheço a mulher dele, e obviamente conheci Michelle e Barack, e penso que Alma e Michelle tinham o mesmo sentimento - de que isto iria ser uma coisa que podia ser perigosa, que podia ser ameaçadora para as suas famílias, mas Obama queria mesmo aquilo. Colin Powell basicamente perguntou se não haveria outros papéis que poderia desempenhar para ajudar o país. Penso que o mundo foi muito amável comigo, pessoalmente, mas existia mesmo o medo do que a decisão poderia significar, quais seriam os perigos. Havia pessoas que enviavam ameaças de morte, e até eu recebi ameaças de morte por causa do museu...

O racismo continua forte?
Na verdade, um dos desafios, digamos, dos últimos seis anos tem sido o facto de o racismo, que já esteve enterrado, estar outra vez à luz do dia. Penso que em parte isso se deveu à Administração de Donald Trump, que levou muita gente a usar linguagem ofensiva, pessoas que estavam mais ou menos escondidas de repente saíram à luz do dia e começaram a dizer coisas racistas. Isso esteve sempre lá, eu nunca defendi que a América seria um mundo pós-racista. Houve pessoas que, com a eleição de Obama, afirmaram que a raça já não importava, mas penso que irá sempre haver racismo na América, o desafio é haver força suficiente, pessoas suficientes que digam que essa não é a América em que acreditam.

Acha que a ideia tradicional do caldeirão de culturas, de uma certa forma, levará a uma tendência para que um dia as pessoas deixem de falar de raças ou origens étnicas?
Penso que é possível, mas também que a melhor maneira de pensar nisso é percebermos como é que vamos abordar as nossas diferenças. Havia o sentimento, no início da luta pelos direitos civis, que todos nos iríamos integrar e tornar-nos iguais. Agora, sabemos que haverá sempre diferenças. Vou dar um exemplo: eu cresci numa cidade onde havia muito poucas as pessoas negras e, quando abri o museu, houve muitas pessoas que tinham sido minhas colegas de escola que o quiseram visitar. Vieram 20 indivíduos e eu fiz-lhes uma visita ao museu - eram pessoas que eu tinha conhecido entre os 10 e os 15 anos e que já não via há muitos, muitos anos, e nem sempre nos demos bem - e vi que eles ficaram muito impressionadas com o que viram, com a oportunidade de aprenderem coisas que não sabiam. Diziam-me coisas como: "Gostaria de ter compreendido isto enquanto crescia!" Portanto, para mim isto é uma grande ajuda. Quando vejo aqueles jovens que me chamavam nomes e lutavam comigo a reconhecerem que se teriam comportado melhor se tivessem compreendido a minha história, fico com esperança de que haverá sempre pessoas a dizer que aquela não é a América em que acreditam.

Em Portugal há muito debate sobre o comércio de escravos transatlântico, pois o país esteve muito envolvido durante séculos, e isso é um legado pesado. Há pessoas que relembram também que em certo momento isso acontecia ainda no império, mas não no Portugal europeu, pois no século XVIII houve a decisão da abolição da escravatura. Quando lemos sobre a escravatura, vemos que ela acontecia em todos os países e em todos os tempos, mas a escravatura europeia dos africanos era diferente por se basear principalmente na raça?
Há duas grandes diferenças: a primeira é porque tinha maioritariamente a ver com a raça e era permanente. A escravatura antiga era uma consequência da guerra, as pessoas eram feitas cativas, mas depois de um certo tempo eram libertadas e podiam ser reintegradas na sociedade. O comércio de escravos tinha verdadeiramente a ver com a cor da pele e com a permanência. É por isso que eu acredito convictamente que estas questões ainda estão presentes nos dias de hoje, seja no Brasil, nos EUA, em Barbados, etc. Penso que são mesmo essenciais para compreendermos a nossa identidade nacional.

É fácil para si, como historiador, falar do comércio de escravos em Portugal para um público português?
Eu nunca tenho a arrogância de pensar que sei mais do que as pessoas para quem falo, por isso nunca chego e digo: aqui está a resposta! O que acredito é que é importante para países como Portugal perceberem qual é a estratégia que devem adotar para lhes permitir ter as conversas de que precisam tendo em conta as circunstâncias locais. Eu tenho dificuldade em ouvir as pessoas falarem sobre o desafio de erguerem um memorial à escravatura em Lisboa e como lá chegar. Portanto, acho que a educação, a pressão política, a visibilidade são importantes, mas também tem de ser o que funciona para cada um. Quando construí o Museu Afro-Americano, apesar de o Congresso ter dito que sim, que o podia fazer, foi preciso angariar dinheiro, enfrentar muita oposição, por isso tive de pensar como numa campanha política e pôr as pessoas a defendê-lo mesmo antes de existir sequer um edifício. Por isso o meu argumento é - talvez seja o homem de Washington em mim a falar - que tem de ser como uma campanha política, não chega ser-se inteligente, não chega ser-se corajoso, tem de se ser político quando se pretende ir mais longe.

Como é que um afro-americano olha para os países africanos? Alguns deles são governados pelos descendentes das etnias que fizeram o comércio de escravos com os europeus.
É verdade. É muito interessante. Lembro-me de antes da pandemia ter estado no Gana, no reino de Ashanti, e ter-lhes dito que eles tinham construído o seu poder e feito a fortuna com a venda de outros africanos, ao que me responderam que não, nem pensar, eles não tinham feito isso. Parte do que são as ambivalências para mim é que as pessoas precisam de aceitar o seu papel na História e outra é que há muitos americanos que ainda não sabem muito sobre África. Até há quatro ou cinco anos, apenas 13% dos americanos tinham passaporte. Portanto, a falta de conhecimento sobre a Europa ou sobre África é muito, muito grande. Acho que muitos de nós, muitos afro-americanos, querem encontrar a terra-mãe, querem poder dizer que África é a nossa origem. É por isso que é muito interessante ver o número de afro-americanos que fazem pesquisas de ADN para tentarem descobrir se vêm do Gana, da Guiné, etc. Acho que é verdadeiramente o desejo de encontrarem uma peça de quem são, da terra-mãe. Lembro-me da primeira viagem que fiz a África, há muitos anos, e de como estava entusiasmado por "voltar a casa". Escrevi um artigo em que dizia que ninguém me tinha dado as boas-vindas a casa porque eu não era africano, era americano. Penso que é o que vemos agora, com os negros americanos a tentarem compreender a ancestralidade africana.

A Administração Biden está a apoiar mais este esforço educacional do que as administrações tradicionais. É diferente da de Trump? É uma preocupação partilhada tanto pelo Partido Democrata como pelo Republicano?
Não diria sim se me tivesse feito essa pergunta há cinco anos. Acho que há hoje pessoas dos dois lados da política que compreendem que a América é melhor quando se compreende a si própria e que não o consegue fazer sem olhar para as questões da escravatura, mas também há pessoas que pensam que isto não deve ser feito, porque tem que ver com culpa, com acusar alguém. Para mim é muito simples: isto não tem a ver com culpa nem com acusações, tem a ver com compreendermos quem somos. Sempre fiquei impressionado pela maneira como as pessoas se sentem confortáveis a dizer que o ADN do bisavô as envergonha, mas já não se sentem confortáveis a dizer que o ADN histórico também as envergonha. É tudo o que eu tento fazer, explicar que isto não tem a ver com culpa, tem a ver com compreensão, com sarar as feridas. Acredito convictamente que o trabalho de um historiador, que o trabalho de um bom museu, é muito simples: é definir a realidade e dar esperança.

leonidio.ferreira@dn.pt

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