"Invasão islâmica da Península é facilitada por visigodos estarem divididos"

Nascido de uma tese de mestrado, este Fath Al-Andalus: Os Muçulmanos na Península Ibérica aborda anos iniciais de uma presença islâmica que vai durar até 1492. Marcos Santos explica razões do sucesso do exército de Tariq.
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A derrota dos visigodos em 711, que podemos simbolizar na batalha de Guadalete em julho desse ano, perante as tropas muçulmanas é uma surpresa ou o reino visigodo estava num tal estado de divisão, de crise interna, que não tinha qualquer hipótese contra os invasores vindos do Norte de África e movidos por grande fervor religioso?
É uma surpresa porque, de facto, os visigodos não estavam preparados para aquela novidade, novidade na maneira de combater, também motivados pela religião, e acima de tudo havia um clima de guerra civil na Península Ibérica e uma divisão forte entre os visigodos.

O exército do rei Rodrigo que enfrenta os muçulmanos na tal batalha de Guadalete não representava nem de perto nem de longe toda a força do reino visigodo?
Não, claro que não. Podemos fazer aqui uma breve síntese do que aconteceu: o rei Rodrigo estava na sua habitual campanha estival contra os bascos lá em cima, junto a Pamplona, quando é informado que tinha havido uma invasão por gente estranha em terras ibéricas junto ao estreito que hoje conhecemos como de Gibraltar. E fez uma longa caminhada de cerca de 800 quilómetros ou mais por aí abaixo, em marcha acelerada, para tentar combater os inimigos. Entretanto, vai recebendo notícias de alguns confrontos entre tropas muçulmanas e cristãs, em que os visigodos tinham sido derrotados. Mas eram mais escaramuças do que batalhas formais. Pensa-se também que haveria um nobre visigodo, Agila II, na região da Tarraconense, correspondendo de certo modo à atual Catalunha, que estava em revolta e Rodrigo teria ido replicar o que o rei Wamba tinha feito uns anos, antes, combater os bascos, para não ter surpresas na retaguarda, e depois descer à Tarraconense para combater os rebeldes visigodos. Por isso, quando vem para baixo, vem com as tropas que o acompanhavam no momento. A Península teria então cinco milhões de habitantes, sendo que havia uma elite visigoda e uma maioria de hispano-romanos, e a possível geração de força pelos cristãos era muito maior do que aquela demonstrada.

Mas falou também da forma de combater dos exércitos muçulmanos vindos do Norte de África. Que novidade trouxeram, além do ímpeto religioso, próprio de recém-convertidos? Afinal, o essencial dos soldados são berberes convertidos por árabes a uma religião que não tinha então sequer cem anos, mas tão fulgurante que nessa época já tem também exércitos no vale do Indo. Alguma técnica militar nova?
Sim. Uma delas terá sido a investida com recuo falso, que se tornou depois muito comum durante a Idade Média. É uma suposta investida, logo seguida de um recuo e assim que as forças adversárias avançam na direção do nosso corpo aí sim o nosso corpo abre e investe com toda a força. É provavelmente uma inovação berberes. Há relatos das batalhas da conquista árabe do Norte de África em que os berberes terão usado esta técnica.

Estamos a falar das tropas de Tariq, o tal chefe guerreiro que vai dar nome a Gibraltar, Djebel Tariq, ou montanha de Tariq, e que são na esmagadora maioria berberes?
Sim, eram fundamentalmente berberes há muito pouco tempo em contacto com o islão. O enquadramento deste exército terá sido feito por alguns notáveis árabes, provavelmente até figuras religiosas, mas os que combatiam eram berberes.

Depois da vitória em Guadalete é praticamente um passeio dos exércitos muçulmanos a conquista da Penúltima Ibérica?
Na verdade, não. As fontes históricas indicam que logo a seguir a Guadalete, ou Wadi Lakka, que eu prefiro usar, houve um cerco com batalha campal inconclusiva em Écija, que esse sim talvez seja o momento decisivo, pois tanto a crónica moçárabe como as fontes muçulmanas dão a entender que é aí que a elite visigoda desaparece quase por completo. E a desorganização do reino torna-se total. Divididos e desorganizado, são facilmente derrotados.

Estamos a falar de visigodos, povo germânico que se instalou na Península Ibérica logo após a queda do Império Romano, e, portanto, no momento da invasão muçulmana estão no que é hoje Portugal e Espanha há mais de dois séculos. A população hispano-romana está com as elites visigodas?
Está. Essa população hispano-romana submeteu-se aos visigodos e integrou-se pouco a pouco. São todos cristãos e o exército já não é só composto de nobres visigodos.

Há um esforço de conversão imediato pelos invasores ou verifica-se aquela estratégia do islão que é tolerar os outros povos do livro, cristãos e judeus, desde que paguem as respetivas taxas?
A islamização é lenta. E nesta fase inicial não é uma grande preocupação que houvesse conversões em massa. E porquê? Exatamente pela questão da fiscalidade. Era rentável ter contribuintes não muçulmanas, que pagavam mais. Os dhimmis.

A derrota em 732, frente aos francos, mostrou o limite da expansão islâmica? Passar os Pirenéus era demasiado para as linhas de abastecimento dos exércitos muçulmanos? Como Carlos Martel consegue aquilo que Rodrigo falhou?
Carlos Martel mostrou grande valor pela forma como lutou em Poitiers. Criou a famosa muralha de escudos. É importante dizer que os muçulmanos quando passam os Pirenéus e entram na atual França vão novamente com espírito de conquista. Levam as famílias. Vão para ficar. Não é uma mera incursão militar. Mas o dispositivo tático de Carlos Martel travou-os. Chegou primeiro ao local de batalha, escolheu o ponto elevado, e ganhou vantagem. Na realidade fez o mesmo que os muçulmanos em Wadi Lakka. Os francos em Poitiers posicionaram-se de maneira defensiva, deixaram os muçulmanos subir pela encosta e quando o líder Al-Gafiqi foi morto seguiu-se a debandada das tropas.

A resistência cristã na Península Ibérica, de onde nascerão mais tarde os reinos da Reconquista, é feita por quem? Quem se refugia lá norte, nas Astúrias?
Esse momento está ainda muito pouco clarificado. A figura de Pelágio está nas fontes históricas mas simultaneamente também é muito mitificada. O que se sabe é que depois de Guadalete há uma fuga de algumas das elites cristãs rumo ao Norte, para a Cantábria, as Astúrias e a Galiza. Provavelmente eram umas centenas de visigodos, alguns deles da nobreza, que terão congregado a população cristã da zona.

Quando chegamos a 756, final do período que o livro trata, dá-se a chegada à Península Ibérica de Abderramão I, sobrevivente da dinastia omíada derrubada pelos abássidas. Os muçulmanos controlam quase todo o espaço ibérico, a Reconquista ainda não começou. Abderramão I traz notáveis árabes com ele. Que mudanças se dão?
Não muitas. Ele vem sobretudo colher os frutos daquilo que a dinastia omíada já tinha plantado. Os clientes dos omíadas prestaram-lhe homenagem, rapidamente congregou esforços para tomar o poder. Chega como emir, vai a uma mesquita a uma sexta-feira, que é assim que se faz tudo no islão, e declara um emirado independente e este momento é politicamente importante. Já não obedece aos califas abássidas.

Não sendo ainda o califado que Abderramão III irá proclamar em 929 em Córdova, pode dizer-se que é o início do Al Andaluz, de um islão ibérico distinto?
Sim. O centro de poder muda de Ifrykia e Damasco para Córdova e é o começo de uma nova era para a Península Ibérica.

leonidio.ferreira@dn.pt

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