IMPROPÉRIOS

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Desejavelmente, o Alemanha 2006 , a ter início terça-feira próxima, cimentará o rotativismo bipolar de caracter antidistributivo e antidemocrático que, desde 94, vigora no futebol mundial : de um lado, o Brasil, do outro, uma equipa qualquer com muita organização, muito "trabalho durante a semana", geysers de esquemas tácticos com imensas "compensações" e "jogadas ensaiadas", tudo profundamente estudado com a ajuda de um quadrinho à venda na Decathlon onde se projectam uma infinidade de setas de duplo sentido (no caso, a França, noutro ano qualquer, outra equipa qualquer).


O trânsito tranquilo e sem emoções destas duas equipas em direcção à final trará vantagens que não se cingem ao incremento da felicidade geral das pessoas de bem. Um Brasil na final representará mais uma prova, a amontoar em cima da luxuriante pilha já existente, que o expoente máximo do futebol como Arte não está ao alcance de treinadores com uma refinaria de métodos às costas, centros de estágio (com relva), uma "estratégia de longo prazo para a formação" e mais não sei o quê, mas sim numa coisa radicalmente indefinida, de natureza a tender para o cabalístico, que infecta as pessoas daquela parte do mundo por volta do ano e meio de idade, e que poderia muito bem originar uma variação ao Livro de Job: "Porque que é eu sou sempre tão bom, Senhor, porque é que estes defesas num momento estão à minha frente e logo depois caídos lá atrás com lesões internas, Senhor?, porque é que esta camisola amarela provoca arrepios na espinha, Senhor?, e a vermelha com calções verdes não aquece nem arrefece, Senhor?"


Uma França na final apontará - como, aliás, já há décadas a Holanda - para o único caminho que resta à população enclausurada na parte de fora da bacia do Amazonas: muito "planeamento", técnicos a explodir vesuvicamente de "qualificações académicas e metodológicas", jovens "acompanhados" desde que foram largados nas trompas de falópio, tempo, campos (com relva) perfeitamente horizontais, bolas (redondas e pressurizadas), luz.

Desde o Mourinho até ao Mourinho, dizem-nos que a base do futebol é a recepção e o passe. Com o devido respeito, suas senhorias a vossa ascendência. A recepção e o passe são uma coisa, uma bola a viajar pela selecção brasileira, outra ligeiramente diferente.


E os caros amigos hão-de ter notado também, com estes maravilhosos resumos dos Mundiais passados que têm povoado as semanas televisivas pré-Alemanha 2006 (e que só por si são 75 por cento deste mundial ), o hipotético paradoxo de, sendo o jogador brasileiro o expoente máximo da técnica individual, as melhores recordações das selecções do Brasil entram para a memória eterna em ficheiros com o nome "jogadas de equipa".


Ou seja: como é evidente, na selecção brasileira não existem nem passes nem recepções nem jogadas de equipa nem tralha nenhuma dessa, mas sim uma afecção psicossomática generalizada em que os jogadores são transmitidos sucessivamente por entre as várias posições da bola, por forma a que esta, em conjunto com as onze pessoas de amarelo, formem um quadro sobre o qual se exclame: "Isto é futebol , [impropério à escolha]!".

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