Igreja Católica já lê 'Caim'

A polémica em torno das declarações proferidas aquando do lançamento do seu novo livro não pára. A religião continua a ser um tabu em Portugal, principalmente se é o Nobel que regressa aos Evangelhos <br />
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O confronto com os representantes de Deus na terra está, antes de mais, a provocar fortes vendas do novo livro de José Saramago. Caim, a que poucos evitam atirar não uma pedra mas as suficientes para o esconder debaixo de um monte de críticas e reacções, mesmo que ainda não o tenham lido, não passa despercebido desde que o único Prémio Nobel da Literatura portuguesa o apresentou com pompa e polémica em Penafiel e atraiu todas as conversas.

Está conseguido o primeiro objectivo do escritor, questionar as religiões e gerar o debate sobre a Bíblia. Quanto às pedras, Saramago já dissera no domingo: "Eu limito-me a levantar as pedras e a mostrar esta realidade escondida atrás delas. Nada disto existiu, está claro, são mitos inventados pelos homens, tal como Deus é uma criação dos homens". E não será por acaso que o seu livro já está a ser lido por vários elementos da Igreja Católica portuguesa e a ser debatido entre eles, conforme o DN apurou ontem.

O debate em torno de Caim não obedece a regras e quase parece uma das passagens bíblicas que o autor tanto critica no Antigo Testamento: violento, cruel e raras vezes com serenidade. Ontem, o Vaticano informou que "este será um assunto ao qual a Igreja Católica não irá dar importância" porque "está muito acima de considerações deste tipo". Enquanto isso, reeditando os ataques ao Evangelho Segundo Jesus Cristo, o eurodeputado Mário David (ver texto em cima), sugeria ao autor que resignasse à cidadania portuguesa. Na comunicação social, correram argumentos de ambas as partes. Pelo meio, Saramago convocou para hoje uma conferência de imprensa para falar de Caim.

O teólogo Anselmo Borges tem opinião formada sobre Caim: "Gostei do livro e até digo que é importante." Dá três razões para justificar a sua opinião: a "Bíblia é um livro aberto; há liberdade de interpretação e obriga os crentes a reflectir". "Não me choca a sua perspectiva, mas a Bíblia não é só isto. São 73 livros que os crentes assumem como um todo, só assim têm sentido. O autor só procurou momentos do Antigo Testamento", alerta. Anselmo Borges relembra que Karl Marx escreveu que "a religião é o ópio do povo", mas que a frase continuava: "... e é suspiro por libertação." Confessa que "se Deus fosse o que Saramago apresenta, só tinha uma atitude, ser ateu. Mas Ele não é assim, nem a Bíblia, que tem um duplo veio, a sacerdotal e profética, e perspectiva a libertação da humanidade". "Não é por acaso que a Bíblia termina com a frase de Jesus: 'Amai os vossos inimigos'", diz.

Já o teólogo Alfredo Dinis garante que não lerá Caim: "Li o Memorial do Convento e não gostei do escritor." Considera que Saramago "não entende a Bíblia como a história do povo de Israel e de como a foram interpretando". Diz que o autor "apaga muitas páginas" e que "é natural que tenha episódios mais e menos luminosos. Isso não quer dizer que Deus quisesse que as pessoas fizessem coisas vergonhosas". Quanto ao título, reclama: "Abel e Caim fazem parte da linguagem metafórica para o povo judeu entender como a humanidade está baralhada. A Igreja não considera hoje Caim personagem histórica, representa, como figura histórica, a complexidade do ser humano."

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