Sousa (como quer ser identificado), 82 anos, está internado em casa. Tem uma infeção urinária. Mais uma. São ainda sequelas das sessões de radioterapia que fez há mais de quinze anos para combater um tumor. "Fazia-se radioterapia à bruta. Era Hiroxima e Nagasaki", diz. Por isso, hoje, os internamentos por infeções são frequentes..Na semana passada sentiu-se mal na rua, na Costa de Caparica, onde vive. Chamaram o INEM e foi para o Hospital Garcia de Orta, em Almada, onde esteve três dias. Depois propuseram-lhe continuar o internamento em casa. Tem assistência médica 24 horas por dia à distância de um telefonema, é monitorizado e recebe a visita de um médico e de um enfermeiro diariamente. O tempo que passou nos hospitais, quer como médico otorrinologista no Hospital de São José, em Lisboa, quer como doente, incentivaram-no a aceitar a proposta logo..Já se encontrava estabilizado, apesar de continuar a precisar de hospitalização - o principal critério para ser integrado neste serviço. A sua casa tem todas as condições para o internamento, faz parte da área geográfica do hospital de Almada e tem quem o vigie: a mulher, Teresa.."O doente vem ao hospital e tem critérios de internamento. Isto é uma alternativa para não ficar cá. A maioria dos doentes, cerca de 80%, são logo internados através das urgências", resume Francisca Delereu, a diretora do serviço de Medicina e responsável pela Unidade de Hospitalização Domiciliária do Garcia de Orta - a primeira do país..O hospital garante tudo o que é necessário para o tratamento, desde equipamentos a fármacos, a transporte para a unidade de saúde, caso seja preciso fazer exames. Visitam todos os doentes pelo menos uma vez por dia, mas estão disponíveis 24 sob 24 horas, sete dias por semana, quer para dar resposta a situações de possível agravamento do estado de saúde quer para telemonitorizar a evolução do doente. A máquina de medir a tensão que deixaram em casa de Sousa envia em tempo real os resultados para o sistema no hospital, controlados sempre por um médico e por um enfermeiro.."Isto é do melhor, porque o serviço de urgência tem muito de guerra da Crimeia. Aqui a atenção é toda para mim. E em medicina a coisa mais importante é a simpatia. Qualquer doente é um animal muito carente", diz..A liberdade de nossa casa."É a nossa casa de banho, a nossa cama, a nossa mesa", explica Aquilino Espada, 71 anos, o segundo doente que o médico Pedro Correia Azevedo e o enfermeiro Rui Saramago vão ver esta manhã. "O tratamento é tão bom aqui como lá [no hospital]. E na minha casa posso estar com os meus e tenho a minha liberdade", diz Aquilino. Mesmo sem poder sair de casa, fala em liberdade, nem que seja a de se poder mover do quarto para a sala, onde recebe a equipa de saúde..Esta mobilidade também beneficia os doentes e faz que a recuperação seja mais acelerada, reduz as quedas nos mais velhos, porque conhecem bem o espaço onde estão, e faz que os doentes estejam mais disponíveis para ouvir os ensinamentos personalizados dos médicos e dos enfermeiros. É tudo adaptado. A equipa tem conselhos muito práticos para dar, como desviar carpetes que possam provocar quedas ou evitar certos alimentos..Estão também protegidos das infeções contraídas em ambiente hospitalar. Particularmente importante para Aquilino, que tem propensão para desenvolver infeções na pele. Está hospitalizado, a fazer antibiótico intravenoso, com uma infeção nos tecidos moles, que aumentou para o dobro a sua perna direita. Deve ter alta nos próximos dias, prestes a cumprir os nove dias de internamento médios previstos pelo serviço..Poupou ao hospital cerca de 40% do que gastaria nas instalações do Garcia de Orta. Segundo o site do Serviço Nacional de Saúde, cada doente da hospitalização domiciliária gasta entre 600 e 700 euros. Para além de deixar uma cama livre para um paciente mais grave..O hospital sem paredes.Para quem faz este hospital em casa, "o dia-a-dia muda radicalmente", conta Rita Nortadas, a médica coordenadora do serviço. É o hospital que vai ter com os doentes e não o contrário. Quando se sentam no carro e deixam o Garcia de Orta, deixam a segurança e o auxílio das equipas multidisciplinares rodeadas de todos os equipamentos necessários. "Em casa, muda o paradigma. Temos de jogar muito por antecipação. Não podemos deixar as situações chegarem ao limite. Temos de captar os sinais mais rápido, ser perspicazes e, ante a duvida, levar o doente de volta para o hospital", indica a médica..Por isso, todos os nove médicos e os dez enfermeiros são profissionais experimentados, com mais de seis anos de profissão. Contam também com a ajuda de uma farmacêutica, de uma assistente social, técnicos, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e um membro do conselho de administração. É uma equipa que trabalha verdadeiramente em grupo. Passam muito tempo juntos e por isso o ambiente é de confiança. "Quando eu estou a pensar numa coisa, ele já a está a fazer", diz o enfermeiro Rui sobre o médico Pedro, durante uma viagem de carro para Amora, Seixal, para mais uma visita num consultório improvisado..A dinâmica entre os dois é muito pessoal, até porque tendencialmente costumam integrar a mesma equipa. Partilham muitas histórias que vão contando aos doentes, com quem acabam por passar mais tempo do que no hospital físico. As visitas duram cerca de 40 minutos e são mais do que momentos para fazer análises ou medir a tensão. Conversa-se um pouco sobre tudo. Os utentes estão mais descontraídos e motivados para colaborar com os profissionais de saúde. "É aqui que se faz a verdadeira educação para a saúde", diz Pedro Correia Azevedo..Quando o médico consultou Sousa no hospital, este não se recordava de todos os medicamentos que toma habitualmente. Mas em casa, Pedro pode ver os fármacos, ajustando de forma mais segura a medicação. "É preciso saber viver para lá destas quatro paredes do hospital, onde nós crescemos e fomos educados. A nossa escola clássica é esta [hospital]. Mas se as coisas forem bem feitas, se formos criteriosos, sentimo-nos superbem em casa deles", acrescenta a médica Rita Nortadas..Três anos depois de ter começado a testar o modelo, a equipa médica sente-se mais segura e até já consegue ultrapassar os objetivos iniciais. Uma das primeiras preocupações que tiveram foi a forma como lidariam com as mortes em casa. Embora os óbitos só representem 1% dos casos que recebem, desde cedo começaram a pensar nas pessoas que querem morrer em casa. "O nosso primeiro óbito foi um doente jovem com tumor no pulmão, que estava internado por uma pneumonia. Ele sabia que estava nas últimas e pediu para morrer em casa", conta a diretora do serviço.."Antigamente nascia-se e morria-se em casa. Agora nasce-se e morre-se no hospital, muitas vezes em condições perfeitamente indignas", continua Francisca Delereu. É isto também que pretendem mudar..Primeiro hospital em casa.O conceito de hospitalização domiciliária nasceu nos Estados Unidos, em 1947, depois da Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de criar um ambiente psicológico mais favorável à recuperação dos doentes. À Europa, o modelo chegou em 1957 a França e em 1981 a Espanha..Em Portugal, foram precisos mais uns anos. Inspirados pelos resultados espanhóis e já com uma equipa de enfermagem organizada para prestar cuidados ao domicílio, um grupo de profissionais do hospital de Almada propôs à administração experimentar o internamento domiciliário no nosso país. Começaram a estruturar a ideia em 2011, foram ao país vizinho aprender como é que se podia pôr em prática e em novembro de 2015 avançaram. Tinham apenas capacidade para atender cinco doentes por dia. Hoje são 22. Em quatro anos, internaram 1300 doentes e passaram a ser os responsáveis por formar novas equipas de hospitalização domiciliária no país. Este ano são já 23 grupos espalhados pelo país.."É um hospital novo", dizem todos com orgulho.