Hospitalários da Ucrânia: "Decidi que a minha profissão é salvar pessoas"

Hospitalários hoje são um batalhão voluntário paramédico e fazem parte do exército voluntário ucraniano. Foram fundados a 6 de julho de 2014, pela sua atual comandante Yana Zinkevych.
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Anne Balytska, 18 anos, é assistente de paramédica no batalhão dos Hospitalários. Entrou há seis meses. "Quando a guerra começou eu senti que precisavam de mim aqui. Ajudo a minha equipa, e tenho as mesmas responsabilidades do que os restantes membros" conta. "Aqui estamos todos juntos. Eu faço as coisas que me indicam os superiores. Estou a especializar-me como paramédica". Na linha da frente do conflito, os Hospitalários dão a vida para salvar outras vidas desde o início da guerra na Ucrânia em 2014. O nome vem da Ordem de Malta, dos Cavaleiros Hospitalários de São João de Jerusalém, que remontam ao tempo das cruzadas, século XI, no território da Palestina.

Os Hospitalários hoje são um batalhão voluntário paramédico e fazem parte do exército voluntário ucraniano. Fundados a 6 de julho de 2014, pela sua atual comandante Yana Zinkevych. Com apenas 18 anos, e a trabalhar com médica voluntária, esta decidiu criar este grupo consciente da situação de extrema violência e urgência que se vivia naquela altura com o estalar do conflito na Ucrânia devido à invasão do Donbass e à anexação da Crimeia. À data, não havia um serviço de urgência especializado que pudesse retirar militares e civis das linhas da frente com a diligência necessária. Uma boa retaguarda médica significa uma redução drástica do número de baixas efetivas, que muitas vezes acontecem devido a hemorragias que um torniquete poderia salvar.

Cargo 200 é nome de código militar para as baixas, usado por ambos os exércitos, uma vez que é uma gíria soviética, que começou a ser usada durante a guerra russo-afegã. Cargo 300, para feridos em combate, e é este o foco dos paramédicos, impedir que se tornem cargo 200 durante a viagem até ao hospital. As unidades dos Hospitalários consistem num condutor, um atirador e um médico, que se podem deslocar numa ambulância ou numa carrinha pick-up, como conta Vitaly Viazinko, 45 anos, condutor há 15 dias. "Antes era instrutor de qigong chinês, mas agora não há alunos. Tinha que ajudar a Ucrânia. Não tenho treino militar, por isso achei que os paramédicos seria bom lugar para começar". Vitaly explica que existem dois tipos de transportes no batalhão. " Uma carrinha 4x4 Mitsubishi L200 que utilizamos para nos deslocar até aos locais sob "fogo aberto". Temos que nos deslocar rápido até ali." É neste momento que os paramédicos estabilizam os feridos. "Depois utilizamos ambulâncias convencionais para os transportar até ao hospital mais perto para obterem todos os cuidados de saúde necessários", explica.

Inicialmente, apenas o Hospital de Dnipro recebia estes feridos, por ser a primeira zona segura depois do Donbass, mas hoje o conflito é global e a rede de hospitais é muito maior, por exemplo o Hospital Militar de Zaporozhzhia ou Hospital nº17 em Kiev. Ambos recebem feridos da linda frente que depois redistribuem por outros hospitais, após os primeiros cuidados e operações.

O lema dos Hospitalários é: "Para o bem de todas as vidas!", e desde que foram fundados em 2014 aquando do início da guerra entre Rússia e a Ucrânia já salvaram milhares de vidas. Nas linhas da frente duma guerra existem militares, civis e médicos. Os civis partem quando as sirenes soam, mas os médicos chegam às zonas mais difíceis quando todos querem dali sair. Os militares simplesmente continuam o combate. Todos no batalhão dos Hospitalários estão cientes que os médicos também morrem, aliás quando se entra na sala principal da sua base em Pavlograd, do lado esquerdo há um grandes memorial com velas dos voluntários que já partiram. O risco é diário. Alguns são presos pelo exército russo, como é o caso de Yuliya Payevska, capturada desde 16 de março, em Mariupol com o seu condutor. Yuliya ainda não foi incluída nas listas de trocas de prisioneiros, e há informações de que foi torturada. É acusada pelos russos de ser nazi, mas a verdade é que desde o início da guerra em 2014 a sua unidade já salvou cerca de 500 pessoas.

O batalhão dos Hospitalários inicialmente estava ligado ao partido político ultranacionalista Pravvy Sektor, anterior à revolução EuroMaidan em 2014. Por isso, muitos dos seus membros mais antigos têm ligações a ambos. É por isso que estes grupos de paramédicos são acusados de ligações à extrema-direita. Mas na prática hoje fazem parte do Exército Voluntário Ucraniano, ou seja não existem quaisquer ligações políticas relevantes.

"Desde 2016 que trabalho no batalhão, antes disso trabalhei como paramédico numa unidade das forças armadas ucranianas. Desde 24 de fevereiro, o meu trabalho não piorou muito, mas alguns ferimentos pioraram porque agora há bombas de fósforo. São proibidas pela convenção de Genebra mas estão a ser usadas no Donbass. Há também mais ataques aéreos, e é por isso que os ferimentos se agravaram", relata Artem Sobol, um paramédico de 25 anos muito popular entre os colegas. "No início vês um pedaço a arder, um corpo em chamas. Vês que está o corpo todo a arder. Depois percebes que tu não consegues extinguir aquele fogo, que termina numa queimadura grave, um furo na carne". Isto são as consequências das bombas de fósforo que têm sido usadas na região de Avdiivka.

"Até agora o mais complicado para mim, foi um rapaz com queimaduras no corpo todo. Foi extremamente difícil ventilá-lo porque as vias aéreas estavam queimadas. Mas ele sobreviveu", relembra Artem com um sorriso. Vladislav Sachko, de 22 anos é também paramédico. Acabou sua formação em 2019. "Agora ajudo nas patrulhas. Estou-me a preparar para a guerra na minha cidade."

A base dos Hospitalários em Pavlograd é um frenesim logístico dia e noite, entram e saem carrinhas com material médico e comida. Hoje as ambulâncias estão paradas o que é bom sinal. Como deviam ser todos os dias em guerra, dias de trégua.

O custo humano deste conflito na Ucrânia já pôs termo à vida de pelo menos 9600 civis, dos quais 214 crianças. Mas estes valores têm uma margem de erro enorme, pois estima-se que apenas na cidade de Mariupol o número de vítimas mortais possa ascender a 20 mil. As vítimas mortais de ambos os exércitos para já são tabu mas falamos de milhares de ambos os lados, com valores duas a três vezes superiores do lado russo. Plenamente conscientes destes números, Sasha e Hudya partem de Zaporizhzhia para levar comida e medicamentos táticos para a base em Pavlogard. Para eles, que são voluntários é apenas mas um dia de guerra.

Mas a calma das ambulâncias aqui diz pouco porque ainda não passou um dia em que uma pessoa não morresse vítima direta desta guerra que conta com 85 dias. Até que chegue a paz, os Hospitalários não vão parar, isso garante "Bagheera", a chefe das operações no centro de Palvograd que por agora não tem tempo para entrevistas.

dnot@dn.pt

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