Hospital de Coimbra iliba neurocirurgião suspeito de mortes
O Conselho de Administração do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) concluiu que o neurocirurgião suspeito de más práticas, das quais teriam resultado mortes de pacientes, não violou as "leges artis" (o conjunto de regras científicas e técnicas que o médico tem obrigação de conhecer).
O inquérito interno considerou ainda "abstrato" o conteúdo das queixas, das quais o DN deu notícia, em março de 2020, e que levaram à abertura de um inquérito-crime pelo Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Coimbra e um processo de averiguações pela Ordem dos Médicos.
O neurocirurgião em causa era o chefe da equipa especializada em tumores cerebrais e foi nestas cirurgias que a sua atuação começou a deixar em alerta outros profissionais do hospital e as equipas médicas que o acompanhavam: haveria práticas desadequadas, nomeadamente em violação das leges artis. Em causa estavam mortes mortes de vários pacientes, dois deles em janeiro desse ano. Um tinha 29 anos, o outro, 40.
"Na sequência de diversas notícias que foram veiculadas pela comunicação social, imputando a violação das leges artis a um médico de Serviço de Neurocirurgia do CHUC, foi deliberado pelo Conselho de Administração abrir um processo de inquérito com vista ao apuramento concreto dos factos. Contudo, tratava-se de notícias que não concretizam os alegados erros médicos, sendo o seu conteúdo, na quase generalidade, abstrato. Dos atos concretos que se conseguiram individualizar, da prova coligida, não se concluiu ter havido violação das leges artis, entendidas como o conjunto de regras fixadas pelos profissionais da medicina, a que os seus pares estão obrigados", diz fonte oficial do CHUC, em resposta ao DN.
Questionada sobre se o médico, na altura com 62 anos, continuava ao serviço, esta porta-voz ainda não respondeu. Porém na altura em que foram tornadas públicas as denúncias e a existência de um inquérito-crime, o profissional ainda se mantinha em funções. O DN questionou também a Procuradoria-Geral da República (PGR) e a Polícia Judiciária (PJ), que coadjuva o DIAP nesse caso, sobe o estado do inquérito, mas ainda não obteve resposta.
Numa das queixas, dirigida à procuradora-geral da República, Lucília Gago, e ao diretor nacional da PJ, Luís Neves, era a ex-candidata a Belém e ex-eurodeputada Ana Gomes a dar o alerta. Segundo a PGR, esta denúncia foi junta a um inquérito que já tinha antes sido instaurado. Desde 2018, pelo menos, que havia registo de denúncias sobre aquele neurocirurgião.
Conforme o DN noticiou, a situação era de tal forma grave, que vários anestesistas especializados em neurocirurgia recusavam-se a operar com esse médico. De uma equipa com cerca de uma dezena de anestesistas, só três, dos mais antigos, continuavam a apoiar as suas cirurgias. O MP recebeu denúncias de outros médicos e pessoal do hospital que não conseguiram ficar em silêncio perante o agravamento da situação nos últimos dois anos (2018 a 2020). Reuniram informação e relatórios que sustentaram a queixa.
Um dos profissionais de saúde que contribuiu para a queixa formal disse então ao DN que existia "gente a morrer ou deixada com complicações muito graves após operações a tumores cerebrais no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, por negligência, numa base semanal, sem que ninguém faça nada", incluindo "vários jovens".
As denunciadas más práticas médicas já tinham sido alvo de queixas internas por parte de outros neurocirurgiões, mas estes acabaram por ser afastados da equipa de tumores encefálicos. Segundo o que estava escrito na denúncia, boa parte das situações suspeitas tinham antes sido expostas no CHUC. As queixas foram enviadas à hierarquia do hospital, do diretor clínico à administração, mas nada mudou, e o neurocirurgião continuou a operar.
São dados vários exemplos. Numa certidão de óbito "a causa da morte apontada foi edema do pulmão. Nunca é referido o facto principal que causou a disfunção cardiorrespiratória do doente, documentada, que foi a isquemia aguda do território das duas artérias cerebelosas póstero-inferiores, que irrigam parte do tronco cerebral, e que foram inadvertidamente laqueadas durante a cirurgia por um cirurgião que, violando as leges artis, nem usou microscópio cirúrgico - quando a utilização deste equipamento é obrigatório internacionalmente nestas cirurgias", explicava uma das fontes médicas.
Havia testemunhos de verdadeiros horrores, documentados com fotografias e relatórios prontos a entregar às autoridades. Um deles, narrado por um dos anestesistas, descreve "a hipertensão e bradicardia que o médico provocou ao puxar o tumor agarrado ao tronco cerebral. O anestesista teve de baixar a hipertensão para salvar o doente. O doente ia morrendo na sala. Morreu depois. A equipa presenciou tudo. Ele foi avisado, foi mandado parar e não parou".