Hirokazu Kore-eda - um japonês tranquilo na Coreia
Depois de França, com A Verdade, Hirokazu Kore-eda volta a filmar fora do seu Japão. Em Broker - Intermediários, a ação passa-se na Coreia do Sul, local onde encontrou uma história que já há muito queria abordar: o processo de adoções de bebés deixados por mães anónimas em caixas em casas próprias. Mais do que um drama sentimental que aborda esta situação que a lei coreana permite, as Baby Boxes, este é um registo algures entre a leveza e uma reflexão sobre um espírito de solidariedade, acompanhando um processo de dois intermediários que levam bebés dessas caixas a casais que procuram a paternidade. Um negócio de colocação e venda de seres humanos que tem tanto de esquema como de serviço humanitário. A dada altura, estes dois intermediários acabam por estar a fazer tráfico de crianças mas, inadvertidamente, querem encontrar pais que saibam dar amor às crianças que estão a comprar...
Kore-eda volta a filmar processos de famílias disfuncionais e situações familiares com um ponto de vista invertido, um pouco como tem sido uma das tónicas temáticas do seu cinema. Em 2004, em Ninguém Sabe, filmava um caso de abandono infantil; em Tal Filho, Tal Pai, em 2013, refletia sobre os laços familiares sem sangue e, mais recentemente, em 2018, em Shoplifters -- Uma Família de Pequenos Ladrões, voltava a filmar um caso de adoção no seio de uma família clandestina do Japão menos privilegiado.
E fá-lo com um humor e um sentido de descoberta bastante generoso, sobretudo sem nunca perder a identidade de conto de bons malandros. Em Broker sente-se que a câmara está com as personagens e, aos poucos, vamos acreditando nestes intermediários e no seu vestígio de humanismo.
"Não estou muito preocupado com ficar perdido na tradução... Antes deste, tinha filmado em França... Às vezes, podemos perceber as palavras, mas continuamos sem perceber as emoções. Quando dirigia o Ethan Hawke em A Verdade, ele não se cansava de me dizer que as palavras não eram o mais importante, o importante eram os sentimentos. Enfim! Mas desta vez tínhamos um tradutor muito bom -- não senti nenhuma dificuldade. Quis apenas transmitir sensações e sentimentos. Foi fácil", começa por nos dizer numa suite do hotel Maria Cristina, centro nevrálgico do Festival de San Sebastián, onde o filme passou na Secção Pérolas e foi um dos campeões de popularidade nesta terra basca. Kore-eda, num japonês suave, ria quando falava. Mais uma vez, o tradutor percebeu que estava na berlinda.
Continuando a confiar no tradutor asiático que traduzia para inglês, Kore-eda confessava que há citações cinéfilas aqui -- revelava que Magnolia, de P.T. Anderson, é uma delas, mas que a maior delas é Os Três Padrinhos, de John Ford, de 1948, por sua vez um remake...
"Tento sempre procurar explicar porque escolho este ou aquele tema, mas nunca sei bem responder. Quando arranjo uma justificação, mais tarde, percebo que é falsa, pelo menos, muitas vezes é assim. Falo muitas vezes da família como conceito, mas sempre quando há uma falha. Quando está tudo bem nunca pensamos em termos de conceito do significado de família. Ao filmar a família estou também a filmar uma ideia de perda. Em termos cinematográficos, acho interessante pensar neste aspeto, porque pode surgir sempre uma nova forma, uma nova criação da célula familiar...".
Kore-eda confessa também que Broker foi um projeto que lhe surgiu para satisfazer uma ideia antiga de filmar gente em movimento: "Quis mostrar como uma família pode ser criada quando passamos muito tempo com as mesmas pessoas. Mas, ao mesmo tempo, é uma história que tem muito a ver com os moldes da sociedade coreana... Há muita coisa aqui que não poderia filmar no Japão".
Depois da sua Palma de Ouro para Shoplifters e da bonança dos Óscares para Drive My Car, do conterrâneo Ryûsuke Hamaguchi, Kore-eda está convencido de que o cinema japonês está a ser cada vez mais aceite e apreciado fora de portas: "Fico tão contente com isso! E tem a ver também com uma nova geração de cineastas, em especial Koji Fukada ou Hamaguchi. Por outro lado, não vamos conseguir o impacto que os filmes da Coreia do Sul conseguem a nível global. No Japão ainda fazemos filmes muito locais para um público japonês, arriscamos pouco. Não acredito que vamos ter a força do cinema coreano!"
Já na calha, segue-se uma série para a Netflix, mas o realizador é pronto no esclarecimento: "Estou a fazer uma série para uma plataforma, não porque preciso, é apenas porque me apetece. Além do mais, as plataformas estão a ajudar-nos no Japão a termos melhores condições para filmar: pagam mais e temos horários mais reduzidos de rodagens."
A série chama-se The Makanai - Cooking for the Mako House e pode ser a perdição de qualquer "foodie". O cinema continua logo a seguir com a pós-produção de um projeto secreto chamado Monster.
Em Cannes, Broker venceu o prémio de Melhor Interpretação Masculina para Song Kang-Ho, o ator coreano mais famoso. O ano 2023 começa bem nos ecrãs portugueses, eis um exemplo de um filme capaz de chegar a diversos públicos, tão sensível como abrangente, sem nunca se compro meter...
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