Depois de a maquilhadora lhe dar os últimos retoques com o eyeliner, o blush e o batom, prestes a começar a entrevista, Hillary Clinton comenta que a questão da imagem é "um fardo". Estamos no início do segundo episódio (intitulado Becoming a Lady) de quatro que examinam os pontos cruciais da vida da antiga primeira-dama e secretária de Estado dos EUA, e muito do que atravessa toda a minissérie remete para o modo como ela se apresentou em público ao longo do tempo, das palavras ao sorriso, dos tipos de corte de cabelo à substituição dos óculos pelas lentes de contacto e uso de maquilhagem. Parece um assunto menor, mas não é quando falamos de uma das figuras femininas mais polarizadoras da política americana, com uma atenção mediática constante e venenosa. O "fardo" esteve sempre lá: no princípio dos anos 1970, quando era ainda uma jovem estudante de Direito da Yale, chegou a melindrar a futura sogra por não corresponder às convenções de beleza da época....Hillary estreia-se no TVCine Edition (episódio duplo hoje e amanhã, a partir das 22h00) no dia em que Hillary Rodham Clinton completa 74 anos. Uma minissérie documental, assinada por Nanette Burstein, que cruza os acontecimentos da campanha eleitoral de 2016 com as linhas biográficas de uma mulher amada e odiada. Ela tem noção clara desses sentimentos opostos que desperta à sua volta, daí que este olhar sirva também para dar uma ideia de que não estamos perante uma mulher, como diz a certa altura, "tão boa nem tão má quanto as pessoas dizem.".O projeto inicial era apenas um documentário baseado nas mais de duas mil horas de filmagens dos bastidores da campanha presidencial de Hillary, que culminou com a vitória do candidato republicano Donald Trump. Mas Burstein percebeu que se poderia aqui contar uma história de vida, ampliar a abordagem e relacionar o que antecedeu o desfecho daquela campanha com os fantasmas de uma permanente incompreensão sobre quem é Hillary Clinton. A realizadora decidiu então entrevistá-la (a conversa estendeu-se por sete dias), e contou também com depoimentos do marido, Bill Clinton, da filha Chelsea, e de várias pessoas próximas, desde amigas de infância a colegas da universidade, para além de assessores e jornalistas. Barack Obama dá o ar de sua graça ao terceiro episódio, e, de resto, não há vozes incómodas - segundo Burstein, nenhum republicado quis participar, com receio de uma possível influência da biografada no processo de montagem, dado o seu envolvimento natural..Ver imagens de arquivo da estudante Hillary na década de 1960, ouvir falar, por outros, da sua inteligência feroz e pragmatismo, e ouvi-la recordar o seu entusiasmo com a efervescência idealista dos direitos civis, é perceber que há uma coerência na mulher que desbravou caminho em ambientes dominados por homens, e que quaisquer contradições fazem parte da força da sua presença na sala, desde logo enquanto advogada. Uns chamaram-lhe em tempos feminista radical, outros veem nela uma mulher do sistema, e há quem não compreenda como é que, depois do escândalo Monica Lewinsky, ela manteve o seu casamento com Clinton. Na série documental, este é um dos pontos mais sensíveis, mas não é evitado. E nem Bill, de viva voz, escapa à dureza da lembrança daqueles dias negros da família e da presidência..Note-se que não há grandes revelações em Hillary. Não é sequer esse o propósito de Burstein, que sabe o quanto a personalidade no centro do seu documentário já foi analisada publicamente. O que aqui se faz é acrescentar uma visão franca aos principais momentos da vida pública dela, com um discurso que procura contextualizar o que não se vê fora da arena dos media..Nascida em Chicago, filha de pais metodistas e conservadores, Hillary usou, desde cedo, as plataformas ao seu alcance para vincar uma posição feminista e de liderança. Não é por acaso que as colegas de faculdade a apontam como uma das vozes da sua geração, o que faz sentido para todo o seu percurso, se pensarmos no modo como influenciou, na narrativa americana e não só, o acesso das mulheres ao poder. Essa atitude está no ADN das suas ações políticas (iniciadas ao lado do marido), mesmo nas circunstâncias mais tóxicas - algo que parece ter criado nela uma carapaça resistente, de que o sorriso faz parte para manter uma certa normalidade diante dos maiores dissabores. E voltamos ao fardo que é ter de gerir uma imagem....Hillary arranca com o caso dos e-mails (recorde-se: o uso de um servidor de e-mail privado para comunicações oficiais) e volta a ele no final. Essa chamada "surpresa de outubro", que beneficiou de uma infeliz coreografia por parte do FBI, foi um golpe absurdo na campanha da candidata democrata, e uma questão determinante para o resultado desolador. "É um momento decisivo porque muita da polarização e do vitríolo vem dos escândalos que surgiram ao longo das décadas. O caso dos e-mails atingiu essa narrativa maior de "Oh, ela é tão vaga. Oh, não podemos confiar nela." Isto teve pernas para andar por causa [das controvérsias] dos anos 1990", disse a realizadora à Esquire. Sem o peso de estar a concorrer a algum cargo, e com a abertura e intimidade possível, o documentário ajuda a resolver qualquer coisa dessa falta de confiança. Estão aí quatro episódios para se conhecer a Hillary dos bastidores, a mulher que diz para a câmara: "What you see is what you get.".dnot@dn.pt