Hercule Poirot em apuros! 

Mais um mistério para o Poirot extravagante de Branagh resolver. Em <em>Mistério em Veneza</em>, o realizador e ator adapta um romance de Agatha Christie que propõe uma sessão de espiritismo numa Veneza que parece uma atração de teatro imersivo. Dispensável.
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Não é uma desgraça total este terceiro Poirot de Kenneth Branagh mas não deixa de ser uma prova de ineficácia desta trilogia: entretenimento estilizado incapaz de gerir o suspense e o potencial de Agatha Christie. Talvez agora perceba-se a razão da sua ausência do Festival de Veneza, festival que seria o porto ideal para a estreia desta aposta da Disney. Não é, pois, à terceira que o bigode fiel a Christie de Branagh deixará de ser mal-amado.

Depois de Um Crime no Expresso do Oriente (2017) e de Morte no Nilo (2022), adapta-se agora um dos mistérios menos conhecidos da escritora de policiais, Hallowe'en Party, aqui adaptado pelo argumentista Michael Green o menos fielmente possível. Tal como nos anteriores, a produção faz gala em mostrar muitos meios e cenários de luxo, mas sobretudo em exibir o habitual elenco vistoso. Nomes como a oscarizada Michelle Yeoh, Jamie Dornan, Tina Fey, Riccardo Scarmacio e Kelly Reilly, todos eles muito profissionais, todos eles muito iguais. Vedetas que servem sobretudo para dar peso ao poster, apenas isso.

Nesta história de fantasmas que interroga o sobrenatural, encontramos o detetive belga Hercule Poirot em retiro em Veneza, mais preocupado com prazeres gourmet. O mais famoso investigador do mundo recusa-se terminantemente a voltar ao ativo, mesmo tendo multidões à sua porta a pedirem para resolver mistérios. Para afastar os mais insistentes, até tem um guarda-costas e tudo, um antigo agente policial.

Subitamente, recebe a visita de Ariadne Oliver (Tina Fey, uma espécie de alívio cómico), uma escritora de policiais que se auto-intitula de "amiga", mesmo quando Poirot insiste orgulhosamente no facto de não ter amigos. Ainda assim, Ariadne convida-o para uma festa do Dia das Bruxas num Palazzo de Rowena Drake (Kelly Reilly), uma senhora marcada pela recente morte da filha. Uma festa que inclui a seguir uma sessão com uma médium reputada, Mrs. Reynolds (Michelle Yeoh), especialista em falar com os mortos. Apesar de inicialmente conseguir perceber alguns dos seus métodos, Poirot acaba por se surpreender, sobretudo quando começa a ouvir vozes do além e a literalmente ver crianças mortas.

A intriga adensa-se quando o próprio é atacado por um vulto e Mrs. Reynolds acaba morta sem piedade. Chega o momento de fechar o Palazzo: todos são suspeitos, inclusive o próprio guarda-costas do detetive. Hercule Poirot entra em ação e o filme não muda de décor.

Aliás, um dos problemas deste A Haunting in Venice é a sua dificuldade prática de sobreviver perante essa proposta de huis-clos. Dir-se-á apenas que este conceito de espaço fechado na investigação tem problemas em encontrar soluções de cadência de ritmo. Kenneth Branagh e o seu diretor de fotografia, Haris Zambarloukos, optam essencialmente por exibirem uma estilização estética das mais exibicionistas que se tem visto. Um "estilo" que se gaba de ângulos de "olho de peixe", contrapicados ridículos e planos inclinados a torto e direito. Para quê? Não se sabe, presumivelmente para nos inquietar perante a sugestão da possibilidade dos fantasmas serem verdadeiros e este mistério ser, afinal, realmente algo perto do sobrenatural. Não revelando o desfecho, apenas se pode dizer que Branagh estava danado para fazer um filme policial a misturar o sistema do filme de terror. Ora, o realizador já terá feito isso bem melhor no seu segundo filme, esse saudoso Viver de Novo, de 1991.

Outro dos defeitos ou limitações do filme é um certo efeito de rotina sob a personagem de Poirot, um pouco como se já houvesse fadiga perante os maneirismos da própria figura. Os seus truques foram gastos nos primeiros dois filmes. Se ele é bem maneirista, não era necessário que este terceiro filme o fosse tanto... Juntando-se a isso uma notória falta de gestão de equilíbrios de suspense, ficamos ainda com uma sensação que nenhuma das mortes ou tragédias encenadas têm peso dramático.

A bem dizer, estas personagens, para além de não nos seduzirem, não são de todo suficientemente interessantes para querermos saber delas. Seguramente por essa razão, Mistério em Veneza nunca nos abala, nunca prega sustos, nem mesmo com as "aparições" e os infindáveis truques de sombras e preto & branco do passado.

Pior, quando tenta ter algum conflito dramático, a coisa descamba para uma sucessão de entradas e saídas em cena que mimetizam a tal pequenez da profundidade do espaço. Uma limitação cénica tremenda, quase a resvalar para a sátira involuntária. Branagh não vai além dos atalhos procedimentais do cinema de estúdio "novo-rico", naturalmente, cai no ridículo.

Havia aqui material para evitar esses equívocos, sobretudo porque estamos perante um conto em que nunca sabemos se o que estamos a ver é real ou não. Se é truque ou não. A indiferença ganha a uma possibilidade de complexidade. E esta Veneza encenada dos anos 1940 tem elegância mas falta-lhe rasgo e uma capa gótica mais excitante. Tudo muito poucochinho.

dnot@dn.pt

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