"Não compreendo a mudança do Infarmed se for uma medida isolada"
Helena Freitas liderou a Unidade de Missão para a Valorização do Interior (UMVI), uma aposta pessoal do primeiro-ministro, António Costa, para coordenar o Programa Nacional de Coesão do Território (PNCT) e lançar bases sólidas para uma descentralização e reversão das desigualdades entre regiões do país. Mas a catedrática descobriu nos decisores políticos uma "inércia e incapacidade de concretizar brutais". Voltou, em junho passado, à universidade de Coimbra, onde é catedrática e assistiu nesta semana, com "perplexidade", ao caso do Infarmed.
É verdade que saiu com uma grande mágoa da UMVI?
Eu tinha uma expectativa grande que esta avaliação do interior e a definição de políticas públicas fosse uma aposta política central. Fui aguardando essa sintonia e esse apoio e, a certa altura, percebi que havia uma enorme inércia e uma incapacidade de concretizar brutais. Ninguém percebeu verdadeiramente a urgência do problema. Tinha uma noção muito clara da necessidade de se darem respostas territorializadas, indo ao encontro dos territórios, mas o quadro de urgência que eu tinha em mente não era o mesmo que o dos que tinham de decidir. Eu queira rapidamente dar respostas, queria que o PNCT fosse feito em diálogo com os territórios e assumi esse compromisso, para poder ir identificando novas medidas, o que veio a acontecer mas sem que fossem concretizadas. Existe uma desigualdade profunda no interior que resulta da falta de coesão nacional. E isso só se resolve territorializando as políticas públicas. Não posso ter as mesmas regras para Lisboa e Porto que no interior. Por exemplo, o limite mínimo de 25 crianças por escola não faz qualquer sentido no interior, mas não consegui mudar essa exigência [no âmbito do PNCT foi feito apenas um estudo]. Na área da saúde, também não faz sentido que os horários de uma unidade no interior, onde há uma população dispersa, sejam iguais aos das áreas urbanas. Temos de encarar isto de forma muito séria.
Essas parecem medidas simples...
Exato. E não me venham dizer que isto tem custos, não é verdade. Por exemplo, dizem que não é possível construir uma pequena via rodoviária para ligar pequenas povoações à sede do concelho, mas foi possível durante décadas apostar na redundância de autoestradas que custaram e vão continuar a custar muito mais ao erário público.
Pode dar-me mais exemplos de medidas que considerasse prioritárias e não tivesse tido apoio para as executar?
Há medidas identificadas que gostaria de ter conseguido implementar. Desejo que ainda venham a ser concretizadas. Faz amanhã [hoje] precisamente um ano que foi lançado oficialmente o PNCT, com a sua publicação em Diário da República. Foi feita a primeira avaliação semestral em junho e o que estava previsto era que, a cada seis meses, caso se verificasse a necessidade de novas medidas, pudessem ser incorporadas. Em junho, de facto, tinha identificado o conjunto de novas medidas que pedi que fosse objeto de inclusão no novo projeto, mas não tive qualquer resposta. Há pouca vontade política.
Mas isso é contraditório com os discursos oficiais. A UMVI foi uma grande aposta do primeiro-ministro...
As pessoas do interior costumam dizer que é porque não têm peso eleitoral. Ou seja, representam poucos votos e não têm tido capacidade de pressionar politicamente. Acabaram-se com uma série de serviços públicos essenciais no interior e não se ouviu grande burburinho. De facto, há um conjunto de serviços centrais, como os do Ministério da Agricultura e do Ambiente, que deviam ser mudados para o interior. Essa é uma das medidas do PNCT que não foi ainda executada e esses serviços são dos que mais falta fazem nos territórios. Outra medida estruturante seria o apoio à agricultura familiar, que caracteriza 97% do setor, bem como uma incubadora de base rural que concentrasse conhecimento específico sobre essa realidade, que propus e não avançou. Outra medida cuja não execução me causou alguma frustração foi a valorização dos rios ibéricos (Minho, Douro, Tejo e Guadiana) com uma dinamização dos recursos nas suas envolventes. Há muitas medidas por fazer e espero que venham a acontecer. O país tem de ser olhado por inteiro...
Vê a transferência do Infarmed para o Porto como uma medida de descentralização?
Se foi enquadrada nessa estratégia vejo como positiva, mas aparentemente é quase uma medida por encomenda.
Foi só a mudança de uma grande cidade do litoral para outra grande cidade do litoral?
É desejável a descentralização dos serviços públicos. A atual situação é incompreensível. Parece-me bem se fizer parte de uma estratégia global nesse sentido, com uma descentralização para outras cidades do país. Já não compreendo se foi uma medida isolada...
E o que lhe parece que seja?
Causa-me alguma perplexidade a forma impreparada como a iniciativa foi divulgada. Pelo menos os trabalhadores deviam ter sido informados. Se foi uma medida avulsa, não compreendo. Corremos o risco de o país acabar com duas áreas metropolitanas (Lisboa e Porto) e mais nada. Isto condena o país. Os problemas do interior são cada vez mais os problemas do litoral. A situação que existe é mesmo absurda.
O ex-primeiro-ministro e atual candidato à liderança do PSD Pedro Santana Lopes mudou secretarias de Estado para o interior. A descentralização passa também por aí?
Do que o interior precisa seriamente é de recursos técnicos qualificados, que defendam a soberania do território. Como se perderam muitos serviços públicos, com os seus técnicos, também se perdeu muita massa crítica e isso torna muito mais difícil aos territórios responder às necessidades de uma população. É uma pescadinha de rabo na boca. Quando falamos da descentralização de serviços, idealmente devem ser aqueles que podem ser relevantes nesses territórios, como é o caso dos serviços na área agrícola e ambiental. É incompreensível que estejam maioritariamente em Lisboa. Quando tenho jovens que nem conseguem já cumprir a escolaridade obrigatória no seu concelho, isso é um fator de desigualdade muito profundo e isso não pode acontecer nos serviços públicos. É absurda a situação de Portugal. Somos pequenos e ainda nos fazemos mais pequenos.
É séria a discussão política sobre a descentralização?
Não. E não quero acusar o partido A, B ou C. Empenhei-me muito neste plano, tenho um grande amor ao país, temos um ativo absolutamente extraordinário, mas tem de ser qualificado. Para isso é preciso apoiar as pessoas e facultar-lhes os serviços mínimos que são o garante de uma sustentabilidade. O que fizemos foi exatamente o contrário e para recuperar só com um investimento dirigido a estes territórios.
A sua saída da UMVI foi em protesto?
Comecei a ficar com alguma frustração nos primeiros meses de 2017 e fui transmitindo essa insatisfação, até decidir sair no início de junho. Fui acumulando alguma frustração. Construí uma empatia grande com os territórios e criei uma expectativa que não quis defraudar. Talvez a culpa fosse minha. Isto é uma causa, que esperava fosse de todos. Mas percebi que essa causa não tinha a força política que desejava. A descentralização deve estar na orgânica do governo a nível central. É um caminho longo que o país tem de fazer, mas vital à sua sobrevivência. Sei que estes planos a longo prazo não são muito do agrado dos políticos, mas é assim que tem de ser. Não sei se será possível, sei que tenho enorme mágoa de não ter sido capaz de o fazer.