Haruki Murakami concede um desejo a uma jovem que faz 20 anos
Chega às livrarias nesta terça-feira um conto longo de Haruki Murakami, A Menina dos Anos, daqueles em que o escritor japonês não deixa ao leitor tempo para respirar enquanto não chegar ao fim. É a história de uma jovem que tem de trabalhar no dia em que completa 20 anos e de um homem solitário que lhe pode conceder um desejo.
A primeira vez que foi traduzida para inglês data de 2003 pelo seu habitual tradutor a partir do japonês, Jay Rubin, e publicada na Harper's Magazine. No ano seguinte, integrou um volume com histórias de aniversários. A de Murakami, como não podia deixar de ser, é intrigante e pode dizer-se que cabe ao leitor dar o seu próprio fim ao conto.
A Menina dos Anos foi publicada pela primeira em japonês um ano antes e também integrou uma coleção. Em português, surgiu em 2014, traduzida por Maria João Lourenço, a sua habitual tradutora em português, mas desta vez a história conta com uma edição especial, também da editora Casa das Letras, com ilustraçoes de Kat Menschik.
São apenas 60 páginas que terminam assim: "Pense muito bem, minha bela menina, porque só lhe posso conceder um desejo." Algures no meio da mais absoluta escuridão, um velho com uma gravata em tons de folhas secas levantou o dedo. "Um único para amostra. Olhe que não pode mudar de ideias."
Esta edição faz parte das comemorações do 70.º aniversário de Haruki Murakami e não foge à magia do costume nem a algum fantástico, garantindo ao leitor uma nova interpretação a cada leitura que fizer do texto. A origem deste conto deve-se a Murakami ter lido dois textos, um de William Tevor (Timothy's Birthday) e outro de Russell Bank (The Moor) após o que decidiu fazer a antologia temática sobre aniversários.
Em resumo, este é o roteiro do conto de que o DN pré-publica uma parte: uma mulher recorda a história do que lhe aconteceu no 20.º aniversário, dia em que teve de trabalhar num restaurante italiano porque a sua colega adoeceu. O dono do estabelecimento é um homem de idade e recluso, que todos os dias recebe o jantar em casa entregue pelo gerente. Mas este dá uma queda e é a aniversariante que terá de o substituir. O homem ao saber da data especial pede-lhe cinco minutos - aos 20 anos atinge-se a maioridade no Japão - e concede-lhe a possiblidade de lhe satisfazer um desejo. Anos depis, a amiga da aniversariante ouve esta história e quer saber se o desejo se verificou....
Era sexta‑feira, e, para não variar, ela andava a servir às mesas, nesse dia em que completava vinte anos. Costumava trabalhar às sextas, mas nesse dia em concreto tinha combinado com uma colega de trabalho, de modo a ficar com a noite livre. Por sorte, a outra mostrara‑se de imediato disposta a trocar de turno. Vendo bem, apanhar com os gritos de um cozinheiro furibundo enquanto distribuía pratos de gnocchi de abóbora e espetada de frutos do mar pelas mesas dos comensais não era a forma ideal de celebrar o vigésimo aniversário. Para mal dos seus pecados, a colega piorara da constipação e ficara de cama com 40 graus de febre e uma diarreia que não havia meio de parar. Avisada em cima da hora, não teve remédio senão apresentar‑se ao trabalho.
"Não te preocupes", dissera quando a colega telefonara a pedir desculpa pelo transtorno. "Também não estava a pensar em fazer nada de especial, apesar de ser o dia dos meus anos."
Em boa verdade, não se pode dizer que tenha ficado particularmente desgostosa. A principal razão para isso era o facto de ter discutido violentamente com o mais‑que‑tudo, com quem planeara, em teoria, fazer qualquer coisa nessa noite. Andavam juntos desde o secundário. A discussão nascera do nada, mas, palavra puxa palavra, a cena assumira contornos mais dramáticos e transformara‑se numa longa e amarga disputa em que ambos verbalizaram a sua fúria - suficientemente má para ter estraçalhado de vez os laços que há muito os uniam. Algo no mais fundo do seu ser se transformara em pedra e morrera para sempre. O namorado não voltara a entrar em contacto desde que se tinham travado de razões, e, por ela, não sentia a mínima vontade de tomar a iniciativa de lhe telefonar.
O restaurante italiano em que trabalhava era um dos mais afamados no cosmopolita bairro de Roppongi, em pleno coração de Tóquio. Estava a funcionar desde meados dos anos de 1960 e, embora fiel aos pratos da velha cozinha, continuava a valer pela qualidade da gastronomia tradicional, pelo que os clientes não se podiam queixar. A sala de jantar tinha uma atmosfera calma e acolhedora, sem sinais de novo‑riquismo. Mais do que apelar às camadas jovens, o ambiente atraía, sobretudo, clientes com uma certa idade, entre os quais se contavam alguns atores e escritores célebres.
Havia dois empregados a tempo inteiro, seis dias por semana. Ela e uma colega, contratadas em regime parcial, eram estudantes que trabalhavam três dias em turnos alternados. Além disso, registava‑se a presença de um gerente e, na caixa, de uma senhora magrinha de meia‑idade, que, segundo diziam à boca pequena, se mantinha firme no seu posto desde que o restaurante abrira as portas. Inquebrantável, à semelhança de uma vetusta personagem, com o seu quê de sombrio, saída do romance A Pequena Dorrit de Charles Dickens. Estava encarregada de fazer a caixa e atender o telefone. Só falava quando necessário e usava o mesmo vestido preto. Tinha qualquer coisa de duro e frio; se fosse deixada a vogar à noite em pleno mar, o mais provável era ir contra todos os barcos que se cruzassem na sua rota e mandá‑los direitinhos para o fundo.
Quanto ao gerente do restaurante, andaria na casa dos quarenta. Alto e largo de ombros, bastava olhar para a sua constituição para ver que devia ter feito desporto na juventude, se bem que, com os anos, tivesse acumulado pregas de gordura tanto na barriga como no queixo. O cabelo, curto e espetado, começava a rarear no alto da cabeça, e desprendia‑se dele um odor vagamente bafiento que evocava um solteirão - parecido com o cheiro de jornais esquecidos numa gaveta, à mistura com rebuçados de mentol para a tosse. Havia na família um tio solteirão que cheirava igualzinho.
O gerente usava invariavelmente fato escuro, camisa branca e lacinho - não um daqueles que se compram já prontos, com a camisa, mas um laço genuíno, que ele, todo ufano, fazia questão de apertar na perfeição, sem o espelho à frente. Dia após dia, executava com grande eficácia as suas tarefas, que consistiam em receber os comensais e conduzi‑los às respetivas mesas, e mais tarde despedir‑se deles, tratar das reservas, saber de cor o nome dos clientes mais antigos e fiéis e atendê‑los com um sorriso, mostrar‑se recetivo a uma hipotética reclamação, recorrer aos conhecimentos de perito para dar conselhos avisados em matéria de vinhos e supervisionar o trabalho dos funcionários. A isso, acrescia uma missão especial, que consistia em transportar o jantar até ao quarto onde morava o dono do restaurante.
- O proprietário tinha um quarto no sexto andar do mesmo edifício do restaurante.
Sem saber como, acabámos os dois à conversa sobre o nosso vigésimo aniversário. A maior parte das pessoas lembra‑se perfeitamente desse dia. O dela tinha sido há mais de dez anos.
- Acontece que o proprietário nunca, mas nunca se mostrava no restaurante. O gerente era a única pessoa a conhecer o seu aspecto, já que tinha por obrigação levar‑lhe a comida. Tirando ele, nenhum dos restantes empregados lhe pusera a vista em cima.
- Quer dizer que o dono do restaurante mandava entregar todos os dias no quarto a comida feita no seu restaurante?
- Isso mesmo - confirmou ela. - Às oito da noite, fizesse chuva ou fizesse sol, o gerente estava incumbido de lhe levar o jantarinho pronto.