"Há questões mais urgentes" que a revisão do acordo ortográfico
A globalização não tem nem deve ter uniformidade nem a hegemonia de uma só visão do mundo e uma só língua e cultura. Esta é a conclusão central do primeiro dia de trabalhos do Congresso da Lusofonia e da Francofonia, que hoje termina em Paris. O facto de uma língua como o inglês se ter tornado língua franca em áreas tão diversas como os negócios, a produção e divulgação de conhecimento, as artes e espetáculos sugere uma espécie de superioridade de uma identidade cultural sobre as restantes, o que não é admissível, pois não há culturas superiores a outras, sustentou na sessão inaugural Isabelle de Oliveira, da Universidade Sorbonne Nouvelle, que organiza a iniciativa.
Para o presidente da Universidade, Carle Bonafpus-Murat, sem diversidade de línguas, como instrumentos de comunicação global e interações múltiplas, vive-se num mundo mais empobrecido e rarefeito, em que o Norte continua a predominar avassaladoramente sobre o Sul, como referido numa posterior intervenção.
A resposta, ou parte da resposta, a este fenómeno definido como uma uniformização que se pode tornar uma doença - assim o definiu o antigo ministro da Saúde francês Remy Trudel num painel dedicado às línguas da inovação científica numa perspetiva de internacionalização da investigação - está na mutualização de esforços da lusofonia e da francofonia, disse o ex-governante francês. Espaços que aglutinam vários séculos de história e são dois organismos vivos e relevantes na esfera linguística e cultural. E se persistem fraquezas na concertação político-diplomática e numa geoestratégia da língua no que é o principal instrumento intergovernamental da lusofonia - a CPLP, que reviu e adotou uma nova estratégia em 2016, como disse a secretária executiva da organização Maria do Carmo Silveira, os dois espaços integram em si um peso específico, que tenderá a crescer. Não só pela dimensão demográfica como pela especificidade das respetivas culturas onde são múltiplos os pontos de interceção.
O português é uma língua global, acentuou a dirigente da CPLP, que admitiu a possibilidade dos Estados membros voltarem a abrir a discussão sobre o acordo ortográfico, falando a jornalistas portugueses à margem do congresso. Angola, Brasil e Moçambique ainda não o ratificaram. Mas considerou que há outras questões mais urgentes e relevantes para a CPLP, desde logo um maior reconhecimento entre cidadãos nos Estados membros, funcionando ainda muito a organização a nível dos chefes de Estado e dos governos. Essa aproximação às populações deve ser uma prioridade. E deu como exemplo de algo importante nesta matéria os membros da CPLP conseguirem um acordo sobre a mobilidade no espaço da organização dos respetivos cidadãos. Estes, como salientou na intervenção perante o congresso, são atualmente 263 milhões de falantes, segundo os números mais atuais, o que torna o português a quinta língua mais falada no mundo.
Uma das ambições do congresso é medir a dimensão destes dois espaços (lusofonia e francofonia), assinalou o presidente do conselho académico da Sorbonne Nouvelle, Laurent Creton, e efetuar uma convergência de esforços para os dotar em conjunto de um projeto próprio, atento aos desafios da contemporaneidade - sejam eles relativos à biodiversidade, à cultura ou à economia e relações sociais. Para o delegado geral para a Língua Francesa e Línguas de França, Loïc Dedecker, é essencial a concertação de uma política global, desde logo, na unificação da linguagem técnica e do conhecimento, a publicação em língua própria e o combate aos anglicismos na linguagem quotidiana. O seu uso trunca a variedade e a riqueza de cada idioma e das suas próprias soluções coloquiais, dos dialetos locais e das expressões crioulas representativas de cruzamentos culturais a não deixar perder, referiu.
A anglicização a que se assiste tem também efeitos negativos na divulgação de trabalhos de investigação, como foi referido pela secretária de Estado das Ciências, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal, Maria Fernanda Rollo. Esta deu o exemplo de como a grande maioria das citações de textos científicos se reporta a produção em inglês. Aspeto referido ainda por José Luiz Amaral, da Academia Nacional de Medicina do Brasil, notando que uma das principais bases de textos para esta área específica, a PublMed, integra 9500 trabalhos em inglês produzidos por autores brasileiros entre 2007/17 num total de 14 804, sendo os restantes em português. Grave no campo da investigação é que muitos trabalhos focados em aspetos regionais, ao serem elaborados em português, simplesmente não surgem nas buscas efetuadas.
Mas a estratégia de uma aliança entre duas línguas não se esgota na economia e conhecimento, como ficou claro pelos temas abordados no primeiro dia do congresso. As artes e o desporto são também instrumento central na criação de diversidade e na materialização de um sentimento de pertença e identidade, como deixou claro o treinador da seleção nacional, Fernando Santos, ao recordar a sua experiência fora de Portugal. Referindo-se ao espaço da lusofonia acentuou a ideia de que esta é onde estão portugueses e que o gosto pelo futebol aproxima as pessoas. Dizem-nos que seguem este ou aquele clube e a seleção nacional. A linguagem comum que é o desporto, como o definiu o selecionador, pode ser um elemento mobilizador para evidenciar alternativas e mostrar que atletas de países de menor massa crítica (populacional, económica ou outra) podem ser também grandes potências.
Em Paris
O DN viajou a convite da Universidade Sorbonne Nouvelle