"Há muitas crianças que querem ser vacinadas, apesar de os pais estarem renitentes"
"Vou morrer?". Esta é uma das primeiras perguntas que alguns dos seus pacientes lhe fazem quando estão infetados e os observa por teleconsulta. Maria do Céu Machado, pediatra, professora catedrática jubilada, ex-presidente do Infarmed, e ex-membro da Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19, entre tantos outros cargos que desempenhou, diz ao DN nesta entrevista que defende a vacinação das crianças dos 5 aos 11 anos, porque, justifica, a doença também as afetou. Entende que os médicos queiram mais evidência científica, porque "vivemos a era da medicina baseada na evidência", mas com o SARS CoV-2 a evidência é a do dia-a-dia. E é preciso aceitar isso. Por isso, pede aos pais que confiem nas autoridades de saúde e que olhem para este processo de vacinação como para qualquer outro. E diz: "Se houver perguntas das crianças, devem responder. Se não houver, não falem muito do assunto, se não podem criar mais ansiedade".
A vacinação das crianças não tem reunido consenso no seio dos pediatras, mesmo depois de divulgados pareceres técnicos que demonstram que a vacina é segura e eficaz. Neste sentido, e na sua opinião, qual deve ser o papel do pediatra no aconselhamento aos pais? Que atitude deve ter um pediatra que seja a favor da vacinação perante uns pais que sejam contra ou vice-versa?
O pediatra deve explicar aos pais de forma transparente e adequada ao seu nível cultural os benefícios e os riscos da vacinação. Só assim é que eles poderão tomar uma decisão. Mas isto é a prática usual dos pediatras. É claro que a posição do médico é sempre muito importante, mas os pais são os últimos decisores.
O facto de vários pediatras terem divulgado as suas opiniões, uns a favor da vacinação outros só a defendê-la para situações de risco, gerou mais confusão e dúvidas nos pais?
O que acontece é que muitas vezes as visões dos pediatras são diferentes, porque também é diferente a área de especialização e o tipo de trabalho a que cada um está ligado. Ou seja, um pediatra que trabalhe em cuidados intensivos só valoriza uma doença quando esta é de tal maneira grave que necessita de cuidados intensivos, só valoriza a doença que ponha em risco a vida da criança. Um pediatra que faça trabalho de comunidade, no sentido em que segue a criança, o seu desenvolvimento, tanto físico como psicomotor, valoriza outras situações e tem uma preocupação um pouco mais holística. Tem uma preocupação que não é só física, mas também de saúde mental, como o seu desenvolvimento cognitivo, o impacto de ficar em isolamento em casa ou de faltar à escola. E isto é o que tem vindo acontecer repetidamente.
Destaquedestaque"Se queremos controlar a pandemia temos de ir corrigindo as nossas atitudes e decisões conforme a evidência que vamos tendo disponível".
As divergências têm então a ver com as áreas em que trabalham ou se se é um pediatria de comunidade ou de uma especialidade de risco?
Em parte, sim. Os médicos gostam todos de ter evidência científica para tomar uma decisão. Vivemos uma era da medicina que se baseia na evidência e estamos habituados a ter resultados de ensaios clínicos, feitos em larga escala, quer seja para um medicamento novo ou para uma vacina, mas relativamente a este novo coronavírus, ao SARS-CoV-2, vivemos o dia-a-dia e temos poucas evidências. Veja, primeiro tivemos a variante Alpha, depois a Delta, que resultaram em situações gravíssimas, agora temos a Ómicron, que parece ser muito contagiosa, mas com situações de doença mais ligeiras. Em relação às vacinas, primeiro achávamos que duas doses para um adulto seriam suficientes, agora, passados uns meses, já estamos a efetivar a terceira dose nos mais idosos e vulneráveis. Provavelmente, este coronavírus vai ficar endémico, vai voltar todos os anos, e tal como somos vacinados contra a gripe, teremos de ser vacinados contra a covid-19 no outono ou no início do inverno. Portanto, a evidência, neste caso, e tendo em conta que está a fazer dois anos que o SARS-CoV-2 apareceu na China, não é a evidência que muitos médicos gostariam de ter e a que estamos habituados, mas se queremos controlar a pandemia temos de ir corrigindo as nossas atitudes e decisões conforme a evidência que vamos tendo disponível.
Mas especificamente em relação à evidência para o grupo etário dos 5 aos 11 anos e em relação às vacinas?
Em relação a este grupo etário, a evidência que temos, dada por um ensaio clínico alargado, é a de que uma dose da vacina, que é um terço da dose dos adultos e das crianças mais velhas, tem uma resposta imunitária igual ou superior aos dos outros grupos etários. Além de que os efeitos adversos descritos nalguns casos dos 12 aos 17 e dos 18 aos 24, como situações de miocardite e pericardite, que foram descritas em primeiro lugar em Israel - que começou por vacinar rapazes e raparigas dos 18 aos 24 que estavam no exército - e depois nos EUA, não foram detetadas com frequência neste ensaio, onde ficou demonstrado que neste grupo etário dos 5 aos 11 anos esses efeitos adversos mais perturbadores não representam sequer 1,3% em termos de 100 mil doses administradas, menos ainda do que nos grupos dos 12 aos 24 anos.
Como pediatra considera que há mais vantagens ou desvantagens na vacinação?
As vantagens são maiores do que as desvantagens, porque o que vejo na minha prática clínica é que há um número enorme de crianças abaixo dos 9 anos que estão infetadas, que têm de ficar em casa. Não é o caso de ser uma ou duas, são turmas inteiras ou escolas inteiras que têm de ficar em isolamento profilático. Pais a terem de faltar ao emprego para ficarem com os filhos e muitas crianças afetadas com a doença.
Como?
Às crianças que estão infetadas faço teleconsulta e no caso das mais velhas, com 10 e 11 anos, a primeira pergunta que me fazem é: "Vou morrer?". Elas estão constantemente a ver nos media as notícias de números, sobre novos casos, sobre mortes, sobre internamentos e isso gera reações. Tenho crianças que quando ficam doentes têm ataques de pânico, não querem sair de casa, ou ficam com perturbação de comportamento - um comportamento de oposição, a contrariar tudo, com birras em idades em que já não é normal. Todos estamos um pouco afetados pelos dois últimos anos, se calhar muito mais neste ano do que no ano passado, em que tivemos muito mais paciência, e nas crianças isso também acontece. E é nesse sentido que defendo: se conseguirmos controlar melhor a doença com uma maior franja de população vacinada, então é de vacinar. Portanto, acho que os benefícios são maiores que os riscos.
Destaquedestaque"Tirando as crianças mais pequenas, que têm medo das vacinas, os mais velhos deste grupo querem ser vacinados".
Falou no comportamento das crianças. As que têm 10 e 11 anos não têm autonomia para decidirem, mas o pediatra deve explicar-lhes o processo a que vão ser sujeitas, qual o seu objetivo e as vantagens da vacinação?
Tirando as crianças mais pequenas, que têm medo das vacinas, os mais velhos deste grupo querem ser vacinados. Aliás, por vezes, há pais renitentes e são as próprias crianças que insistem na vacinação, porque não querem ter covid ou não querem faltar à escola. Isto já aconteceu no grupo dos 12 aos 17 anos, em que muitos fizeram a vacina por insistência deles e não por vontade dos pais. Agora, obviamente que o pediatra deve falar com a criança e com a família. Dou aulas na faculdade e digo isto aos meus alunos. Deve falar-se com os pais e com a criança, de forma adequada, conforme as idades e o nível cultural tanto da criança como da família. Depois, pergunta-se à criança se quer fazer alguma pergunta, e muitos deles fazem, porque hoje em dia muitas estão bem informadas sobre a questão da covid e sobre outras doenças.
Uma posição diferente entre pediatras e pais pode afetar a relação de confiança?
Não acho que vá afetar. Tenho pais que me dizem logo que precisam de mais informação sobre o assunto. Olhe, há duas semanas tive uma mãe que à saída do consultório me disse: "Tenho que conversar consigo sobre se devo vacinar os meus filhos". Esta mãe tem três filhos abaixo dos 12 anos e eu respondi-lhe que na minha opinião é para fazer, e ela disse-me: "Então teremos de conversar mais sobre o assunto". Isto não significa que deixe de haver confiança, eu tento convencer, mas os pais têm a última opinião e a nossa relação não é afetada.
A discussão sobre a vacina nesta faixa etária era necessária? Já foi feita em relação à dos 12 e 17 anos...
É verdade, e depois da vacinação nunca mais se falou no assunto, porque correu bem. Então, porque a estamos a repetir? Neste momento, já estão a decorrer ensaios para as crianças dos 6 meses aos 4 anos, vamos voltar a ter a mesma discussão? Ante dos ensaios terminarem não posso dizer se continuo a achar que a vacina é segura para esta faixa etária, mas depois de os resultados serem divulgados, e se a FDA (autoridade americana do medicamento) e da EMA (Agência Europeia do Medicamento) aprovarem, não vejo razão para dúvidas. São entidades com uma responsabilidade enorme e não aprovam uma vacina que seja mais prejudicial do que benéfica.
Na última semana, houve grande celeuma sobre se a DGS deveria ou não divulgar os pareceres em que sustentou a vacinação das crianças. Já foi presidente do Infarmed, acha que esta celeuma se justificava ou foi empolada?
Acho que foi empolada. Eu li o parecer na íntegra e tive que o ler mais do que uma vez, porque a certa altura, mesmo nós, técnicos, ficamos um bocadinho baralhados, quanto mais os pais ou a população em geral. Vou dar-lhe um exemplo: Se quiser comprar um carro 100% elétrico quero saber os prós e os contras desse carro, mas não quero saber como o carro se faz e todas as questões técnicas, não ia entender metade. Portanto, penso que as pessoas devem confiar na autoridade de saúde, na DGS, que esta deve fazer um resumo e publicá-lo. Agora, na íntegra eu não o faria.
A Madeira começa hoje a vacinar as crianças e o Continente no fim de semana. Este processo deverá ficar finalizado em fevereiro e depois de o segundo período ter começado. Poderia ser feito de outra forma, até para se evitar mais situações de isolamentos?
Se vivéssemos num mundo ideal, eventualmente, mas a organização de todo o processo não é assim tão fácil. Penso que se faz o que se pode. E isso tem de ser aceite.
Por fim, este processo de vacinação é diferente dos outros? Como devem os pais explicá-lo às crianças?
É uma vacina como outra qualquer, quanto mais prepararem as crianças mais elas ficam ansiosas. Penso que os pais devem confiar, quando os peritos chegam a um consenso é pelo princípio ético do melhor interesse para a criança. Se houver perguntas devem responder e de forma verdadeira, se não houver não falem do assunto, quanto muito podem dizer-lhes que vão fazer a vacina. Falar demasiado cria-lhes mais ansiedade.