Há limo no cais. Algas de São Martinho vão ser fármacos, têxteis e velas aromáticas
Se não fosse a covid-19, as algas vermelhas do mar do oeste já estariam a viajar pelo mundo inteiro, transformadas em fármacos, em T-shirts, em velas aromáticas ou sabonetes. O projeto de Ricardo Macedo - um designer de 42 anos que nunca desistiu da terra onde nasceu - corre pelo mar e por terra há cerca de dois anos, sustentado pela investigação da Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar, em Peniche (do Instituto Politécnico de Leiria) e pela Universidade do Minho, com o apoio de outros parceiros.
Daquela alga vermelha com cheiro característico, conhecida por limo, é retirado o ágar do tipo Gelidium, "que a nível mundial produz o ágar de melhor qualidade, vendido a peso de ouro", conta ao DN Ricardo Macedo, 42 anos, nascido e criado entre as águas da baía e as ruas da vila.
"Quando regressei a São Martinho (depois de uns anos fora) e olhei à volta, senti que todas as outras terras da região tinham produtos endógenos - Óbidos, Alcobaça, Caldas da Rainha -, só esta é que não. Vinha da área da modelagem, confeção e estilismo, a que juntava o entusiasmo pelo turismo. No regresso à praia que ficou conhecida para sempre como "o bidé das marquesas", viu pouco mais do que os palácios de outros tempos. "Notei que a vila não só não evoluiu como regrediu. E então passei tempos a pensar no que tínhamos e que tipo de produto poderia valorizar. A única atividade que tínhamos era apanhar algas. De maneira que só podia ser por aí."
Rebobinando esse filme dos últimos anos, Ricardo concluiu que as algas já eram "consumidas" desde o século XV para fertilização de terrenos, mas desde os anos 70 do século passado que essa atividade vinha decrescendo.
"Então comecei a ver todas as potencialidades da alga para além daquilo que é extraído, e a compará-la com a mesma espécie que existe em outros locais do mundo, para tentar certificá-la como um produto endógeno nosso, como a maçã de Alcobaça ou como a pera-rocha do Bombarral", conta ao DN. Foi assim que chegou à ESTM e à UM. Era preciso sustentar cientificamente aquilo que só intuía.
O limo é uma alga rara. "Existe em Marrocos, no norte da Austrália, no sul da Ásia - o Japão acabaria com ela quando substituiu a apanha manual pela mecânica, pois ao ser retirada da rocha calcária nunca mais nasce - e, em Portugal, apenas prolifera em São Martinho do Porto. Existe em Peniche, mas é residual e com uma profundidade maior."
Ricardo Macedo fez primeiro todo o trabalho de casa antes de se fazer ao mar, literalmente. "Dirigi-me ao IPL, a Peniche, que já fazia gin de algas, pão de algas e outros aproveitamentos", recorda o mentor do projeto. Foi assim que surgiu a marca Limodo Cais. "Porque toda a gente lhe chama limo, e o cais tem em si muita história: desembarcaram as caravelas, foi aqui que muitas foram feitas com madeira do Pinhal de Leiria.
O projeto visa a exploração sustentável dos recursos endógenos de São Martinho do Porto, abarcando uma componente pedagógica com os apanhadores: "Se o fizerem massivamente, daqui a uns anos acaba. É essa consciência que tentamos passar." E os apanhadores de limo são ainda muitos. Estima-se que haja 22 barcos dedicados a esta tarefa marinha. Depois de recolhidas as algas, o processo prossegue com a extração de ágar-ágar (ou agarose), uma substância que está presente na gelatina, por exemplo, e que provém de muitos tipos de alga. A de São Martinho é considerada de valor elevado, e por isso acaba por ser utilizada e procurada "por tudo o que são laboratórios mundiais", conta Ricardo.
Quando foi ter com o IPL, Ricardo já sabia que o limo poderia ser usado pela indústria farmacêutica. Até então só alguns espanhóis, a título particular, tinham feito alguma investigação sobre a alga vermelha. Por estes dias, todo o processo está a ser documentado em vídeo e fotografia, dentro e fora do mar, envolvendo os barcos e os apanhadores.
Paralelamente ao uso na indústria farmacêutica, o projeto Limo do Cais está focado no desenvolvimento de dois produtos: um na parte do embalamento, para substituir os plásticos, e outro a nível têxtil, tentando perceber "quanto dura um tecido impregnado com essa alga, em comparação com um normal". Imagine uma T-shirt feita com algas, que em contacto com a pele, "além de bem-estar, vai promover outros benefícios físicos e psicológicos". Ricardo Macedo sabia que, lá fora, noutros países, o mesmo já estava a ser feito com outra algas. E por isso está na fase de testes, com o limo. Depois de retirado o ágar-ágar, que é "vendido a peso de ouro", sobra a biomassa que é usada em farinhas, adubo.
A investigação deveria terminar no final deste ano, mas a covid-19 atirou-a para 2021. Além das universidades, Ricardo Macedo tem outros parceiros, que estão a desenvolver diversos produtos à base das algas - as velas aromáticas, os sabonetes naturais com óleos essenciais, entre outros.
A alga vermelha pode ser apanhada entre 15 de junho e 15 de novembro, mas mergulhadores e apanhadores só vão ao mar no máximo 30 vezes, dependendo das condições climatéricas, do estado do mar. A próxima viagem está agendada para os dias 2 e 3 setembro, tendo em conta que são marés de lua cheia, sem vagas. "Neste verão, foram apenas sete vezes", contabiliza Ricardo Macedo, que conhece muitos dos apanhadores e mergulhadores que seguem nos 22 barcos. "É um trabalho de desgaste rápido e de risco - que não está a ser devidamente valorizado", sublinha.
Em causa está um produto que se regenera anualmente e de que é preciso cuidar. "Mais de 50% do oxigénio que a terra respira provém das algas. Têm um papel fundamental no nosso ecossistema, e muitas pessoas desconhecem isso." Não ele, que cresceu com o cheiro do limo. E que encara este projeto como uma missão: "Sou filho da terra e, se não fizer nada pela vida dela, isto vai definhando. Quero com isto dinamizar e promover a vila, para lá da baía e do verão. Para além de ser pedagógico, educativo, sustentável e inovador, há aqui o lado de querer contribuir para o futuro de São Martinho do Porto."
Em miúdo, olhava para as algas como "uma coisa nojenta", que o impedia de ir ao banho. Mas sempre o intrigaram as traineiras que andavam no mar não a apanhar peixe, mas algas. Mais tarde, já adulto, começou a aperceber-se, através da rotulagem de vários produtos, que as algas podiam ser comestíveis. Daí até se empenhar em levá-las ao mundo inteiro foram muitos passos. O projeto deve ser publicamente apresentado antes do final do próximo ano.