Um consórcio de universidades e organizações ambientalistas, que integra a Rede Douro Vivo, passou dois anos a mapear a bacia hidrográfica do Douro, a maior da Península Ibérica. O projeto, coordenado pelo GEOTA - Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, foi recentemente divulgado e dará agora origem a uma proposta, a apresentar ao governo em setembro, com o objetivo de conferir maior proteção aos recursos hídricos e aos habitats que estes sustentam. Ricardo Próspero, porta-voz do GEOTA, defende que é preciso agir com urgência..O que é que espera que resulte deste estudo? Acima de tudo, esperamos que haja uma gestão mais sustentável dos recursos hídricos e da bacia hidrográfica do Douro, esperamos influenciar as várias entidades, a Agência Portuguesa do Ambiente [APA], a fazer essa gestão de uma forma mais proativa. E, acima de tudo, queremos dar início a um processo sistemático de remoção de barreiras obsoletas. Em breve, vamos apresentar uma proposta de lei com vista à proteção de rios e troços de rios com particular interesse de proteção e preservação..Quando diz proposta de lei, o GEOTA vai apresentar já uma proposta para a redação de uma lei? Sim, em breve apresentaremos essa proposta para complementar o quadro legal sobre os recursos hídricos..Em breve é quando? Prevemos que seja em setembro..O estudo conclui que há 1201 barreiras, entre grandes barragens, mini-hídricas ou açudes na bacia hidrográfica do Douro. Este número surpreendeu-o?.Sim. O GEOTA sabia que eram muitas, mas ninguém sabia exatamente o número. O plano de gestão da região hidrográfica avançava um número, mas era muito reduzido, estava limitado às grandes barragens e sabia-se que existia um número de pequenas barreiras, açudes e barragens mais pequenas, que não era conhecido, não estava inventariado. É um número muito expressivo - cada barreira tem os seus impactos ecológicos, está a reter sedimentos, constitui um entrave à migração de espécies de peixes. Claro que o impacto pode ser menor no caso de barreiras mais pequenas, mas há sempre impacto, há sempre destruição de habitats..Como é que se explica que estas barreiras não estivessem inventariadas até hoje? Parece um dado bastante básico... Infelizmente, nós sabemos que a autoridade de gestão da água, a Agência Portuguesa do Ambiente, tem-se deparado com um défice de recursos humanos, tem obstáculos grandes e importantes à caracterização dos nossos recursos hídricos e do território em geral. A bacia do Douro estava particularmente mal caracterizada. No sul de Portugal, esse inventário não tem as mesmas lacunas..O estudo conclui que 25% das 152 barreiras consideradas mais significativas estão abandonadas. Como é que estas estruturas são abandonadas sem ninguém se responsabilizar por elas? A lei não é eficaz neste aspeto. O Estado nem conhece a titularidade de todas as barreiras. Sempre que há uma barreira tem de haver uma licença de concessão, mas, ou porque essas barreiras foram feitas de uma forma ilegal, ou porque são antigas, seja a razão que for, o Estado desconhece onde é que estão, desconhece o seu estado, desconhece o titular que devia explorar essas barreiras..Segundo as conclusões do estudo, estamos a falar de uma região, toda a bacia hidrográfica do Douro, com ecossistemas particularmente ricos... Sim, e estamos a falar da base da cadeia alimentar. As pessoas têm de se inteirar de que, quando estamos a falar de um ecossistema, estamos a falar de toda uma cadeia alimentar muito complexa e com consequências que, muitas vezes, são difíceis de conhecer na totalidade. Por exemplo, nós temos grandes insetos, como as libelinhas, que vivem nas zonas ribeirinhas, que depositam ovos que vão alimentar, por exemplo, a toupeira-de-água, que por sua vez vai alimentar a raposa, ou anfíbios, que por sua vez vão alimentar a águia-cobreira... Há uma cadeia que é muito complexa e, pode parecer que não é importante, mas quebrando um elo dessa cadeia vai haver consequências muito fortes. Há uma enorme complexidade associada a estes ecossistemas..Há espécies ameaçadas nestes ecossistemas? Sim, a toupeira-de-água, o mexilhão de rio, que é uma espécie em que cada exemplar pode durar mais de 140 anos, tem um papel importantíssimo na depuração da água, pode filtrar mais de 50 litros por dia, e que exige um ecossistema com boas condições, águas correntes e límpidas.."Temos santuários com um estado ecológico muito bom".Mas esta análise identificou "santuários" na bacia hidrográfica do Douro... São áreas que foram identificadas pela Universidade do Porto como tendo um particular interesse para a conservação. Por exemplo o Coa, que tem um estado ecológico considerado muito bom. Também temos, por exemplo, o Parque Natural de Montesinho, que apesar de não ter sido criado para receber as espécies ribeirinhas, a Universidade do Porto confirmou que tem um impacto muito positivo nessas espécies e que o seu alargamento para sul, para os rios Mente e Rabaçal, traria muitas vantagens..Apesar dos riscos identificados a situação em Portugal é bem melhor do que em Espanha... O que a Universidade do Porto viu foi que, em Espanha, havia uma pobreza muito significativa da biodiversidade. Havia zonas em que as espécies nativas quase tinham desaparecido por completo e que havia uma quantidade muito significativa de espécies invasoras, com capacidades competitivas sobre as espécies nativas e que, como tal, têm impactos ecológicos muito negativos. Estamos a falar do achigã, da perca, da carpa, do siluro. Na zona central da bacia, no troço principal do rio, há uma grande pobreza de ecossistemas. Em geral, a bacia espanhola do Douro está em muito mau estado. Na bacia portuguesa temos santuários que apresentam um estado ecológico muito bom..O seccionamento dos rios contribui para essa proliferação de espécies invasoras? Sempre que construímos uma barragem estamos a alterar um ecossistema, que deixa de ser de águas correntes e passa a ser um sistema de águas paradas, uma piscina. A água, quando está a correr, é oxigenada, a temperatura é bastante mais fria, o próprio leito do rio, composto por sedimentos grosseiros, tudo ajuda a que exista um elevado teor de oxigénio dissolvido. Nas águas paradas a temperatura aumenta, dá-se início a processos de estratificação da água, existe uma concentração de nutrientes, principalmente de poluentes de origem agrícola, adubos, que se vão concentrar naquela massa de água. São condições mais favoráveis para as espécies invasoras, que estão mais habituadas a estes ecossistemas. O mexilhão de rio, por exemplo, não consegue sobreviver numa zona de albufeira. No caso da truta, da enguia, da lampreia, são criados obstáculos, é impossibilitada a migração através da linha de água..Face às conclusões do estudo, o que defende o GEOTA? Entendemos, em primeiro lugar, que deve ser reforçada a proteção legal dos rios em bom estado ecológico. E que deve ser dado início a um processo de remoção de barreiras obsoletas usando os critérios definidos pela Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Foi criada uma priorização das barreiras consoante a sua remoção contribua mais ou menos significativamente para a continuidade fluvial. Foram identificadas 20 barreiras em que a remoção teria particular interesse. Isto, claro, além de limitar a construção de novas barreiras..Ou seja, mais barragens no Douro não... Exato..Há um perigo imediato para a bacia do Douro? Diria que são urgentes medidas de intervenção? Sim. O GEOTA defende que é urgente agir e proteger os nossos ecossistemas, que são muito importantes. Apesar de não terem um valor económico tangível, têm uma importância enorme. Estamos a falar, por exemplo, da própria proteção da orla costeira, onde vive a maior parte da população portuguesa... Devido à subida do nível médio do mar, à ação da erosão da orla costeira, tem-se procedido a intervenções de maquinaria pesada, com custos muito significativos. E estamos a criar um problema, através da construção de barragens... A sociedade está a financiar a construção de barragens para, depois, estar também a financiar a proteção da orla costeira devido aos impactos que vêm, em boa parte, dessas construções. Esta tendência para construir barragens é muito perniciosa e terá impactos muito significativos a longo prazo.. As barragens devem ser substituídas por que outras fontes de energia? Por energias renováveis, por uma aposta na eficiência energética, também na agricultura - deve trabalhar-se com os agricultores de forma a criar modos de produção menos intensivas em água, com a promoção de culturas de sequeiro, de variedades autóctones. Também promover algumas alterações nos hábitos alimentares da população portuguesa: por exemplo, nós temos um potencial enorme para a produção de frutos secos. O consumo de bolota é muito mal apadrinhado na sociedade portuguesa, infelizmente, porque é um alimento riquíssimo do ponto de vista nutricional e a sua produção não exige qualquer rega. E temos um potencial enorme para a produção de bolota.