"Gulbenkian ajudava os pobres arménios e muitas vezes nem se sabia que era ele"
Para quem ainda não sabe, Lisboa tem desde o ano passado um restaurante arménio de grande qualidade. Fica na Avenida Conde Valbom e chama-se Ararate, como a montanha sagrada para o povo arménio, tão sagrada que surge no brasão nacional, representada com a Arca de Noé no topo, apesar de ficar hoje na Turquia, sinal dos avanços e recuos das terras arménias ao longo dos tempos. "Temos milhares de anos de história, uma antiguidade só comparável a povos como os iranianos ou os gregos. Celebrámos há pouco 4512 anos do primeiro Estado arménio. Fomos também a primeira nação a adotar o cristianismo como religião oficial", comenta Vahe Mkhitarian, presidente da Associação de Amizade Portugal-Arménia, fundada em 2016. Trabalha aqui mesmo ao lado, na Fundação Calouste Gulbenkian, um legado a Portugal de um milionário arménio que também "nunca esqueceu o seu povo", como me sublinha Vahe (a pronúncia correcta do nome é mais Vahé).
Não sou estreante no Ararate, mas pela primeira vez tenho um arménio como parceiro de refeição e, claro, deixo-me levar pelas suas sugestões. Assim, começamos com kachpuri, um pão com queijo que vem servido com uma gema de ovo que é misturada no momento. como na açorda. O meu convidado explica que é uma delícia mais da vizinha Geórgia até do que da Arménia, mas na realidade muito popular em todo o Cáucaso e daí ser servida no Ararate. Vem para a mesa também pão lavash, ótimo para barrar o caviar de beringela. "Muito bom, não é?", interroga-me Vahe e só posso concordar.
Economista de formação, Vahe aproveitou as oportunidades dadas pelo fim da União Soviética e pela independência da pequena Arménia para se aventurar no estrangeiro e chegou a Portugal há 20 anos a convite de um parceiro na área financeira em que trabalhava, depois de etapas em Roma e Londres. Ele que tinha sido vice-presidente de um banco aproveitou uma inesperada vaga na estrutura da Gulbenkian e hoje está nos serviços centrais, no controlo financeiro. "Tenho grande admiração por Calouste Gulbenkian. Por um lado, foi um homem de negócios extraordinário, que sem o apoio de qualquer país não só manteve como acrescentou a sua fortuna durante as duas guerras mundiais. O famoso senhor 5%, riquíssimo graças ao petróleo. Tenho também muito a agradecer-lhe como filantropo. Dedicou-se muito cedo ao apoio do povo arménio, nomeadamente os mais carenciados, na altura espalhados pelo mundo por causa do genocídio pelo Império Otomano. Havia comunidades no Líbano e na Síria muito pobres e foi Gulbenkian quem ajudou a construir orfanatos, escolas e igrejas. Muitas vezes ajudava através de amigos e de conhecidos e nem se sabia que era ele o benfeitor. Sempre foi um homem muito reservado", diz enquanto bebe um pouco de Jermuk, uma água mineral importada da Arménia que o restaurante tem entre as opções. Eu fico-me pela limonada, apesar dos bons vinhos arménios. Comento com Vahe que já bebi ali vinho de romã e que há uns meses até fiz um artigo com um jovem arménio que está em Portugal para estudar as afinidades entre os vinhos de talha arménios e portugueses, legado comum dos romanos.
Aliás, a confirmar a antiguidade arménia, um livro que li neste verão de Simon Scarrow falava de Roma e da sua aliança com o rei Tirídates, uma novela histórica passada no reinado de Nero.
Nascido em Yerevan, a 5 de agosto de 1968, Vahe sente-se completamente em casa em Portugal. "Desde os primeiros dias aqui nunca senti qualquer diferença de tratamento. Até pela nossa aparência. Somos morenos como os portugueses. Portanto, a minha integração na sociedade portuguesa foi rápida", afirma em português fluente este filho do Cáucaso que fala, além da língua materna e da do país de adopção, também russo, inglês e francês.
Sente-se em casa e por cá criou família. Conheceu através de amigos comuns a mulher, a violinista Elena Ryabova-Mkhitarian, que trabalha na Orquestra Gulbenkian. Russa com raízes arménias, Elena deu a Vahe dois filhos, André de 14 e Edgar de 7 anos. "Conheci-a no dia de aniversário dela", recorda, entre risos, o presidente da Associação de Amizade Portugal-Arménia.
Vahe conta que os arménios são numerosos, além da Rússia, nos Estados Unidos, no Canadá e na França, onde vive uma influente diáspora, como esse Charles Aznavour que morreu em 2018 mas que ainda vi em concerto dois anos antes em Lisboa, era ele já nonagenário. "Aznavourian. A terminação ian quer dizer filho de", explica Vahe sobre o som constante nos apelidos arménios, que na emigração por vezes são adaptados.
Para prato principal hesito entre ensopado de esturjão (que já provei e é saborosíssimo) e espetada de carne, acompanhada de batatas e cogumelos também na brasa (também recomendo). Acabo por seguir uma vez mais a escolha de quem é conhecedor. Seis khinkali para cada um, espécie de ravioli gigantes recheados com carne meio picante e que Vahe me aconselha a comer com as mãos, sugando o molho que escorrega do interior. Trazem-nos uns babetes de pano branco, não vá algum de nós sujar a camisa. O meu convidado tem uma reunião para preparar um concerto da Orquestra Consonância, que foi criada pela Associação de Amizade. Elena toca nela (além de fundadora, é diretora) e o objetivo é dar a conhecer aos portugueses a música arménia e aos arménios a música portuguesa. O último concerto foi no Palácio Nacional de Sintra e em dezembro haverá outro no Museu do Oriente. Vahe está determinado a dar a conhecer melhor os dois países que sente como seus e já conseguiu levar duas dezenas de amigos portugueses, sobretudo colegas da Gulbenkian, à Arménia, "uma viagem de sonho, que todos adoraram. Temos muito em comum. Sangue quente e afabilidade".
Os khinkali são enormes mesmo e com quatro fico confortado. Saltamos a sobremesa e só eu peço café. Fico a saber que há três milhões de arménios na sua república no Cáucaso, bem menor do que o território que já foi habitado por este povo, e uns sete milhões na diáspora. Em Portugal, calcula Vahe, serão 100-120, dos quais 78 de nacionalidade arménia a confiar nos números do SEF. Não vivem pois em Portugal crianças que cheguem para uma escola arménia, como aquelas que ainda hoje o serviço das Comunidades Arménias da Gulbenkian financia de modo a preservar a língua e a cultura de um povo plurimilenar. "As novas gerações não falam tão bem a língua como antes", admite Vahe.
O meu convidado arménio diz perceber bem porque Gulbenkian, nascido em Istambul e naturalizado britânico, gostou tanto de Portugal e ficou a viver em Lisboa mesmo depois de terminar a Segunda Guerra Mundial. E tem orgulho no amor à arte que o magnata revelou enquanto colecionista. Uma das atividades da Associação de Amizade é proporcionar visitas guiadas em arménio aos museus Gulbenkian e também promoveu um selo comemorativo dos 150 anos do nascimento do Senhor 5%, editado pelos CTT e pelo HayPost da Arménia. Outras iniciativas da associação foram a criação de uma unidade curricular de língua e cultura arménias na Universidade de Lisboa.
De vários episódios que ouvi de Vahe da história dos arménios e de Portugal ficaram-me dois na cabeça: a comunidade que terá havido no Porto e cujo único rasto é a Rua Arménia e a concorrência que Vasco da Gama foi fazer aos comerciantes arménios de especiarias que há muitos séculos andavam pelo Malabar - acabaram por se entender.
Avenida Conde Valbom (Lisboa)
1 água mineral Jermuk
2 limonadas
1 pão lavash
1 caviar de beringela
1 kachpuri
12 khinkali
1 café
43,80 euros