Guias-intérpretes. Numa tempestade perfeita, a retoma ainda é uma miragem
Há pouco mais de uma semana Isabel Correia tinha ficado de ir buscar um grupo de turistas ao aeroporto. Não acontece muito por estes dias e, neste caso, também esteve para não acontecer. Os ecos do Conselho de Ministros que limitou as entradas e saídas na área metropolitana de Lisboa chegaram a Paris em versão "Lisboa novamente em lock down" e Isabel recebeu uma chamada da organizadora a contar-lhe que os visitantes se preparavam para desistir da viagem, a momentos do embarque. Muita explicação depois, lá acabaram por vir. Mas o que normalmente representaria um fim de semana de trabalho para esta guia-intérprete, habituada a conduzir grupos de dezenas de turistas pela região de Lisboa, ficou-se pelo transporte para o hotel.
Há pouco mais de um ano, a pandemia abateu-se como uma tempestade perfeita sobre a atividade dos guias-intérpretes, um setor florescente nos últimos anos por força do aumento do turismo, mas que trabalha esmagadoramente com turistas estrangeiros, sobretudo seniores, a viajar em grupo - uma realidade que desapareceu do mapa de um dia para o outro. Desde então, dizem estes profissionais, o trabalho foi esporádico ou nenhum. Mesmo nos períodos em que os números da pandemia deram algumas tréguas: o turismo de viagens organizadas, normalmente planificado com tempo, dá-se mal com a imprevisibilidade.
Há um ano, cerca de um mês depois do início da pandemia, o DN falou com quatro guias-intérpretes. Ainda atónitos pela paragem brusca da atividade - "Parece que levei uma pancada e ainda não recuperei, ainda estou dormente", dizia então Isabel Correia - perspetivavam então um ano difícil. A expectativa era que a Páscoa deste ano já trouxesse a retoma, mas a realidade ultrapassou os cenários mais pessimistas.
Um ano depois, Maria Reis vai fazendo algumas visitas com "os chamados individuais"- grupos muito pequenos, casais, famílias. Um cenário muito distante dos numerosos grupos de brasileiros, norte-americanos ou asiáticos que conduzia pela cidade de Évora antes de março de 2020. Este turismo intercontinental desapareceu totalmente, desde então os poucos dias de trabalho que teve fizeram-se com "portugueses, espanhóis, britânicos que têm casa no Algarve, brasileiros que vivem cá". "Não tem sido fácil, não é fácil para ninguém", conta ao DN. Maria trabalha numa atividade que travou a fundo com a pandemia, o marido também: é do setor da restauração, tem um café. "Fomo-nos adaptando, conseguimos sobreviver. Mas é difícil. Apesar de termos as nossas economias estivemos muito tempo parados os dois. Há coisas que agora não podemos fazer, se calhar ir de férias como costumávamos ir. Mas há colegas em situação bem mais grave", conta a guia-intérprete de Évora, que não antecipa grandes melhorias ao longo de 2021.
"Não tenho esperança nenhuma que seja este ano", diz, bem mais a norte, no Porto, Paulo Cosme, secretário-geral do Sindicato Nacional de Atividade Turística, Tradutores e Intérpretes (SNATTI). "Houve algumas esperanças de abertura ali pela Páscoa, mas as reservas que foram feitas acabaram a ser canceladas", conta ao DN, vincando que o turismo organizado precisa de previsibilidade e confiança. E não apenas num plano regional: "A maior parte das pessoas faz um circuito organizado no país. Se não podem fazer o circuito não vêm". Com a agenda de marcações em branco, Paulo Cosme diz que tem visto guias-intérpretes a sair para outras atividades.
Cristina Leal, presidente da AGIC, Associação Portuguesa dos Guias-Intérpretes e Correios de Turismo (os guias que organizam viagens para o estrangeiro) avança números que atestam esta realidade. Num inquérito promovido junto dos associados, uma percentagem de 24% (dos 73% que responderam) disse estar a "trabalhar temporariamente noutros ramos de atividade", sobretudo em call centers e na área do imobiliário. E se a maioria diz querer regressar à profissão quando a atividade retomar, há quem se mostre reticente. "Não sei se não vamos perder pessoas para o setor do imobiliário", diz Cristina Leal, lamentando este cenário, que conduziria à perda de profissionais qualificados que vão ser necessários no futuro. Se 2020 foi negro e 2021 vai pelo mesmo caminho, a presidente da AGIC acredita que tudo vai mudar... não se sabe é quando: "As pessoas estão desejosas de viajar, é o que percebemos do contacto com os nossos clientes. Quando o turismo retomar vai ser uma loucura". Atualmente há cerca de 1200 guias certificados em Portugal.
Há um ano, Isabel Correia olhava para a frente e admitia mudar de atividade. Mudou-se para o lado, na mesma área: está desde novembro a dar aulas de formação numa escola profissional de hotelaria e turismo. "Tenho a empresa aberta" (a esmagadora maioria dos guias-intérpretes trabalha como independente, prestando serviços a agências), "mas não faturo nada", conta a guia-intérprete, para quem os apoios do Estado foram manifestamente "insuficientes", "quase um insulto".
Cristina Leal tem uma opinião menos negativa. O apoio extraordinário à retoma da atividade económica foi importante, mas acaba este mês (a última prestação é paga em julho) e para já não há notícias sobre o que acontecerá daqui para a frente, num semestre em que continua a não haver perspetivas de trabalho. "Para já está tudo num limbo, não sabemos o que vai acontecer", diz a presidente da AGIC. Outra medida fundamental para o setor, argumenta, passa pela criação de um regime de exceção que permita que um grupo de turistas possa ultrapassar o limite de dez pessoas imposto aos ajuntamentos, desde que se desloque sempre "em bolha". "Isso já existe na Grã-Bretanha, as pessoas chegam grupo, deslocam-se em bolha, e partem em grupo", diz Cristina Leal, sublinhando que, sem uma medida deste género, o setor "não vai conseguir trabalhar".
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