Guerra à cultura 'woke'. "Este é um pânico que parece replicar velhos padrões"
Quando a cadeia de retalho Target lançou uma coleção de produtos a celebrar o mês do Orgulho LGBT, que se assinala em junho, várias lojas tornaram-se palco de ameaças e protestos. Vídeos de consumidores enraivecidos com os arco-íris e os slogans de apoio ao Pride inundaram as redes sociais e geraram uma onda de retaliação à marca sem precedentes.
A Target, que celebra o mês do Orgulho LGBT há mais de dez anos e nunca tinha sido alvo de ataques desta natureza, acabou por ceder e retirar vários itens de circulação, incluindo fatos de banho para transexuais, justificando a medida com a proteção da integridade física dos empregados. Nalguns estados norte-americanos o merchandise foi relegado para o fundo das lojas, de forma a mitigar o potencial de incidentes. Os conservadores regozijaram-se: tinham vencido mais uma batalha na grande guerra ao "capitalismo woke" de 2023.
Este termo surgira no contexto do movimento pelos direitos civis no século XX e a luta contra a segregação racial nos Estados Unidos. "Stay woke" era manter-se vigilante e ativo contra as injustiças raciais. Depois de ganhar novo alento na última década, embalado pelo Black Lives Matter, "woke" apareceu nas músicas de artistas como Erykah Badu e Childish Gambino e conheceu uma expansão. No verão de 2020, perante os protestos maciços contra a morte de George Floyd às mãos da polícia, a ala conservadora capturou o termo como sinónimo de excessos progressistas.
"O termo woke migrou para o mainstream e muitos jovens progressistas começaram a usá-lo como um termo positivo", explicou ao DN o professor Clayton C. Howard, investigador da Universidade Estadual do Ohio. "Os conservadores apropriaram-se dele como uma etiqueta para o que está errado na América", continuou. "Que as pessoas não respeitam os mais velhos, os negros querem demasiados direitos, os travestis leem histórias às crianças e tudo está de pernas para o ar. Woke é um termo que capta toda essa ansiedade."
Em maio, essa captura atingiu o pico com a candidatura do governador da Florida, Ron DeSantis, à nomeação presidencial pelo partido republicano. "Biden permitiu que a ideologia woke comandasse a sua agenda", afirmou DeSantis no lançamento da campanha. "Nunca iremos render-nos à multidão woke, e vamos meter a ideologia woke no caixote do lixo da história."
Esta tem sido a sua base ideológica. DeSantis aprovou um pacote de leis controversas, "Stop Woke Act", que entre outras coisas limita discussões sobre racismo e género nas escolas e empresas.
O governador descreveu a Florida como um "estado livre" onde o woke "vai para morrer" e as suas investidas renderam-lhe enorme visibilidade nacional, mas também uma luta milionária com a Disney. A maior empregadora do estado insurgiu-se contra as medidas legislativas e o governador retaliou, retirando-lhe o estatuto de gestão autónoma que tinha desde 1967. O caso está em tribunal e já levou ao cancelamento de um plano que criaria 2000 postos de trabalho em Orlando, onde se situa a Disney World.
Mas potenciais revezes económicos tomaram um lugar secundário numa campanha que dá prioridade a questões de género e oposição às políticas progressivas. O cientista político Juhem Navarro-Rivera, diretor de pesquisa na Socionalítica Research, explica por que é que isto está a acontecer.
"Uma das coisas que aconteceu com o GOP [Partido Republicano] é que não tem políticas populares, em termos de economia, direitos civis ou outros", disse ao DN. "O que tem acontecido é uma tentativa de acelerar a chamada guerra cultural. Mas também tem estado a perder aí."
A legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2015, foi um golpe para a ala conservadora e as sondagens mostram um crescimento continuado do apoio aos direitos LGBT+. "Pelo menos no papel, a sociedade tornou-se mais tolerante quanto a minorias sexuais, tem mais mente aberta em certos aspetos e há a perceção de que os jovens estão a perder valores tradicionais", frisou Navarro-Rivera.
Ron DeSantis pegou no descontentamento com isso e fez dele uma bandeira. "DeSantis tem de se diferenciar de Trump sem o atacar. Ele não tem grandes políticas, por isso está a agir na guerra cultural", indicou Navarro-Rivera. A mais recente sondagem da Universidade Quinnipiac mostra DeSantis com 25% de apoio nas primárias, atrás de Trump (56%). É uma quebra de 8 pontos percentuais desde março.
"Muitos destes tópicos são bons para a discussão no Twitter, mas não sei se muita gente sabe o que é o wokeness", referiu. "Não sei que porção do eleitorado nacional pode ser convencida por uma guerra ao woke além dos que já estão desse lado e já passam muito tempo online", continuou. "Isto é, na sua maioria, um fenómeno online."
No entanto, estas questões estão a transbordar para fora dos espaços online e a chegar à legislação efetiva. Dezoito estados baniram cuidados de afirmação de género para menores, da Geórgia ao Texas. A Florida, além do Stop Woke Act, aprovou legislação para retirar menores transexuais da custódia dos pais se estes autorizarem cuidados de afirmação de género, uma lei que terá de ser assinada pelo governador. Há livros com referências LGBT a serem banidos. E pelo menos 14 estados proibiram espetáculos com travestis, do Arizona ao Kentucky. A situação levou a que a Human Rights Watch declarasse, na semana passada, um Estado de Emergência para os americanos LGBTQ+.
"No passado, os Estados Unidos assistiram tanto a resistência maciça à implementação de direitos civis como a dificuldade com autonomia do corpo e consentimento informado", disse ao DN o professor Timothy Stewart-Winter, docente na Universidade de Rutgers e especialista em história LGBTQ+. "Isto inclui os debates sobre o aborto e a esterilização forçada. O que é novo é que se fundiram com a polarização extrema", analisou, tanto nos governos estaduais como no sistema partidário, "com um de dois partidos políticos a rejeitar a democracia."
Também o professor de estudos americanos Lawrence B. Glickman, que leciona na Universidade de Cornell, sublinha que o cenário "é muito similar" ao dos Anos 80 e 90 contra a comunidade LGBT, "quando houve a histeria" em relação ao VIH. "A visibilidade das pessoas trans aumentou bastante nos últimos anos e isso parece repentino para muita gente", sublinhou. "Muitos conservadores têm ideias essencialistas sobre a masculinidade e a feminilidade, e a noção de que estes não estão escritos na pedra e são fluidos é um grande desafio." Quando Bill Clinton propôs que pessoas abertamente gay deviam poder servir no Exército, muitos argumentaram que isso ia ser perigoso e diminuir o moral das tropas.
Destaquedestaque"Go Woke, Go Broke". A ideia deste movimento é boicotar as empresas que demonstrem apoio a causas woke: direitos LGBT, teoria crítica da raça, feminismo e políticas para aumentar a diversidade, equidade e inclusão.
"Este é um pânico novo que parece replicar velhos padrões que vimos antes, quando grupos minoritários exigiram mais visibilidade", resumiu Glickman.
Clayton Howard disse que a torrente de leis que restringem não só cuidados de saúde, mas também a possibilidade de discutir género, raça e orientação sexual é uma continuidade.
"Há uma crença de longa data de que ninguém seria homosexual ou transexual se os adultos não falassem sobre isso", afirmou. "A ideia é que se protegermos as crianças dessa linguagem isto desaparece."
Juhem Navarro-Rivera referiu que o enquadramento na proteção das crianças é popular em termos eleitorais, ao contrário de outros argumentos.
"Não é muito fácil vender apartheid à população americana. Não é uma proposta eleitoral ganhadora dizer que vão separar brancos e negros ou declarar que é ilegal ser gay", referiu. "Vemos formas de tentar fazer isso pelas margens, como não deixar falar de racismo", sublinhou. "Se não conseguem voltar atrás, podem ao menos parar os ponteiros do relógio."
A pressão bem-sucedida sobre a Target seguiu-se ao recuo da Anheuser-Busch, que retirou um anúncio à cerveja Bud Light por ser protagonizado pela influenciadora transexual Dylan Mulvaney. Os apelos ao boicote levaram as vendas a cair e o movimento ganhou força, sob o mote "Go Woke, Go Broke".
A ideia é boicotar as empresas que demonstrem apoio a causas woke: direitos LGBT, teoria crítica da raça, feminismo e políticas para aumentar a diversidade, equidade e inclusão (DEI). Os restaurantes Chick-fil-A foram apanhados aí: embora a cadeia seja conhecida pelas posições conservadoras, os ativistas descobriram que tem um responsável DEI e circularam um boicote que se tornou viral.
Os exemplos multiplicam-se, com alvos desde a Nike, M&M e NASCAR à Walmart, Gilette e LA Dodgers.
A mera utilização de padrões coloridos pode gerar controvérsia; isso aconteceu quando o álbum dos Pink Floyd The Dark Side of the Moon foi reeditado por causa do 50.º aniversário. O facho de luz colorido da capa criada em 1973 levou à ira nas redes sociais. O arco-íris virou selo tóxico.
"Algumas das empresas woke que tornaram os seus logotipos em bandeiras pride em junho passado não estão a fazê-lo desta vez", celebrou a congressista republicana Lauren Boebert no Twitter. "Viram o poder dos boicotes conservadores e estão assustados. Estamos tão de volta!"
No entanto, o professor Glickman sublinhou que os boicotes a empresas por causas ideológicas tendem a não funcionar no longo prazo. São estratégias antigas, usadas tanto por conservadores como por progressistas, mas raramente bem-sucedidas.
"Há sempre um otimismo inicial de que o boicote está a funcionar, mas ficarei surpreendido se a Target ou a Bud Light registarem impacto nos seus resultados." Glickman também sublinhou que é pouco habitual ver tamanha atenção dada a estas iniciativas.
"Tem a ver com a polarização do sistema político e o afunilamento dos media, porque muita gente agora consome media dentro de uma câmara de eco ideológica", explicou. "Estas histórias são reforçadas constantemente e é disseminada a mensagem de que esta é uma ameaça existencial."
A exportação dos conceitos de "woke" e "anti-woke" está cada vez mais visível, com vários episódios recentes. A revista Glamour UK foi atacada por apresentar na capa o homem transexual Logan Brown e a sua atual gravidez. O retalhista neo-zelandês The Warehouse sofreu um boicote por vender itens como canetas e lápis com arco-íris. Escolas canadianas que hastearam a bandeira multicolorida foram boicotadas por uma grande percentagem dos pais.
"As redes sociais amplificam a retórica exagerada. Essa retórica do medo existencial sempre existiu, mas agora é muito mais forte", explicou o professor Glickman. "É tão extremada que está a gerar pânico constante entre a base de apoiantes: que a multidão woke está a tentar apagar as distinções entre homem e mulher, o último reduto da nossa sociedade."
O especialista está a escrever um livro sobre retaliação e disse que algo que se encontra com frequência para justificar o movimento anti é a acusação de que "eles" foram longe demais, que as coisas estão a mudar com demasiada rapidez e de forma demasiado radical. "Dizem que se abrandassem eles concordariam, mas ao mudar muito depressa estão a desencadear uma reação oposta e proporcional."
Isso acompanha a ênfase na vitimização que caracteriza o movimento, tanto nos EUA como noutras partes do mundo, referiu. "É uma mentalidade de soma zero, em que se agora têm de respeitar os direitos das pessoas trans, isso, de alguma forma, diminui os seus direitos."
O professor disse que tal era frequente durante o movimento dos direitos civis. "Chamavam "superioridade dos negros" à igualdade racial. A ideia é que se alguém está a ganhar direitos, outros estão a perdê-los", continuou. "Para muita gente que nunca teve de pensar nas suas palavras, ter cuidado agora para não ofender os outros parece-lhes opressivo."
DestaquedestaqueOs exemplos multiplicam-se, com alvos desde a Target, Nike, M
A ideia de "longe demais" tem sido usada para dar contexto à resistência e foi bastante discutida também em Portugal, quando a ativista trans Keyla Brasil protestou contra a peça Tudo sobre a minha mãe por ter um ator cisgénero a interpretar uma personagem transexual. O professor Clayton Howard analisou o argumento pela perspetiva da continuidade.
"É importante o momento em que começamos a cronologia. Se começarmos a história no momento em que a ativista se levanta no teatro e faz barulho, isso é a coisa que desencadeia a reação a seguir", afirmou. "Mas talvez haja coisas que levaram essa ativista trans a fazer isso."
Howard citou o argumento do livro Civilities and Civil Rights: "Sempre que os movimentos pelos direitos civis faziam exigências nos Anos 60, os brancos diziam que eles estavam a ser demasiado agressivos e deviam entrar em diálogo", descreveu. "Mas o diálogo nunca produziu grandes mudanças sociais."
O professor considerou que a ideia de que a retaliação advém do exagero é incorreta. "Não, os ativistas trans não foram longe demais. Na verdade, estou muito impressionado com o que eles lograram num curto espaço de tempo", sublinhou. "Qualquer movimento social bem-sucedido tem pessoas que empurram para lá das linhas e não são simpáticas."
Glickman lembrou: "Há uma nova versão da História quando dizem que aceitaram a integração racial e os direitos gay, mas que isto agora foi demasiado longe", afirmou. "Se olharmos para trás, eles não aceitaram nada disso naquele tempo. Alguns ainda não aceitam."
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