Greve de motoristas. Como ativar as Forças Armadas divide constitucionalistas
As sete dezenas de militares certificados para conduzir matérias perigosas, ou os mais de 200 com carta de pesados, só sairão dos quartéis durante a greve dos camionistas em caso de incumprimento dos serviços mínimos e nos termos constitucionais e legais, afirmaram fontes das Forças Armadas (FA) ao DN.
Dois terços desses condutores militares de matérias perigosas pertencem ao Exército e os restantes à Armada e à Força Aérea, segundo uma estimativa resultante das informações recolhidas junto de fontes ouvidas sob anonimato por não estarem autorizadas a falar do assunto. Os habilitados apenas com a carta de pesados estão maioritariamente no Exército.
O porta-voz do Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) e os dos ramos contactados pelo DN escusaram-se a dar informações sobre o assunto, depois de terem assumido a disponibilidade de apoiar as autoridades aquando da greve de abril.
De qualquer forma, dificilmente todos esses militares seriam chamados porque as FA têm de continuar a funcionar - como, por exemplo, é o caso das aeronaves e do respetivo abastecimento de combustível (para as missões de defesa e vigilância aérea ou, entre outras, busca e salvamento).
O almirante Melo Gomes, antigo chefe do Estado-Maior da Armada, disse que este "é um contexto de emergência" e em que, de acordo com o texto constitucional, as FA podem desempenhar "missões no sentido de melhorar a qualidade de vida das populações". O importante é que "o país não pode parar. Tem de haver alternativas, respeitando o direito à greve e encontrando soluções" em que os militares das FA atuam como "último recurso", enfatizou Melo Gomes.
Saber quais os instrumentos legais ao dispor do Governo para colocar as FA no terreno mereceu análises diferentes dos constitucionalistas Jorge Miranda e Jorge Bacelar Gouveia.
Para Jorge Miranda, "é possível" empregar as FA - "nos termos da lei", como indica o texto fundamental - nos mesmos termos em que são chamadas a apoiar os bombeiros na época de fogos.
"Não tem de haver" uma declaração prévia do estado de emergência ou de requisição civil, pois "é a própria Constituição que autoriza diretamente que as FA podem ser incumbidas de colaborar em tarefas de proteção civil" relacionadas com "a satisfação das necessidades básicas das populações", como é agora o caso do "abastecimento dos veículos", sublinhou.
Quanto à autonomia de atuação das FA, precisou o professor Jorge Miranda, os militares "estarão a apoiar e a substituir civis que eventualmente não cumpram as decisões do Governo" - pelo que dar "ordens, não."
Mas, segundo Bacelar Gouveia, "a solução correta era a declaração do Estado de emergência" para colocar os militares das FA no terreno, porque "é inequívoca", em vez de "chegar lá por uma declaração de crise energética, que é um pouco esquisita, ou uma lei de requisição civil de 1974, que é uma solução deficiente" por ser anterior à Constituição de 1976 e poder conter "algumas coisas inconstitucionais".
"O problema de fundo é que a Constituição não prevê um estado de exceção económica ou energética", argumentou o académico. "A requisição civil, no limite, pode ser possível mas é uma solução duvidosa. A solução correta seria a declaração do estado de emergência, para não haver qualquer dúvida de natureza jurídico-constitucional dentro da intervenção das FA numa crise de fornecimento energético, que pode transformar-se numa crise nacional".
Havendo "um direito à greve que também está reconhecido", Jorge Bacelar Gouveia disse que ele "não [pode chegar] ao ponto de interromper o funcionamento do Estado e das instituições". Como "tem de haver um equilíbrio", este professor sustentou que, "invocando um direito de necessidade constitucional, o ideal seria desde já preparar-se a possibilidade de uma declaração do estado de emergência, feita pelo Chefe de Estado com o consentimento da Assembleia da República [AR], neste caso da comissão permanente porque a AR está fechada".
"Se não for assim, o direito à greve não pode ser suspenso e pode ser limitado pelos serviços mínimos. Mas os serviços mínimos não podem por completo tapar ou tornar os serviços máximos em 100%. Isso é violar o direito à greve", explicou o constitucionalista.
Aceitando que o Governo possa invocar a requisição civil, apesar das deficiências desse diploma de 1974, Jorge Bacelar Gouveia enfatizou outro ponto: "Este talvez seja o momento de, até do ponto de vista político, buscar o maior empenhamento de outros órgãos de soberania e não deixar o Governo sozinho nisto."
"Deve haver uma corresponsabilização política dos três órgãos de soberania, além das questões de legalidade, e não ficar o Governo sozinho no meio da confusão. Os outros órgãos [Presidente e Parlamento] têm uma responsabilidade institucional e política. Têm que se pronunciar, a começar pelo Presidente da República", declarou Bacelar Goveia ao DN.
O ministro da Defesa, João Gomes Cravinho, embora considerando ser "matéria para constitucionalistas" saber se deveria ou não ser declarado o estado de emergência para utilizar os militares, deixou claro que esse recurso seria feito "dentro do enquadramento constitucional apropriado".
Mas a líder do BE, Catarina Martins, respondeu de forma enfática: "Não há necessidade, nem fundamento legal" para impôr a requisição civil ou sequer colocar militares das FA a transportar matérias perigosas - pois "só quando há incumprimento de serviços mínimos é que eventualmente o Governo pode utilizar outros meios".
Com vários militares das FA a receber formação específica para condução de matérias perigosas, para além dos 25 que o Exército certificou em junho e julho no âmbito das ações programadas anualmente para "fazer face às necessidades operacionais" do ramo e "contribuir para a futura inserção" desses militares "no mercado de trabalho e para a profissionalização do serviço militar", parece assim estar fora de questão declarar o estado de sítio.
Este é o único dos dois estados de exceção - que "só podem ser declarados nos casos de agressão efetiva ou iminente por forças estrangeiras, de grave ameaça ou perturbação da ordem constitucional democrática ou de calamidade pública" - em que as FA exercem autoridade sobre as autoridades civis (e podem ter sobre as autoridades administrativas civis). Em ambas há restrições às liberdades, direitos e garantias dos cidadãos.
No estado de emergência, que "é declarado quando se verifiquem situações de menor gravidade, nomeadamente quando se verifiquem ou ameacem verificar-se casos de calamidade pública" e em que, mesmo se "determinada a suspensão parcial do exercício de direitos, liberdades e garantias", está previsto "o reforço dos poderes das autoridades administrativas civis e o apoio às mesmas por parte das Forças Armadas".
A verdade é que, embora não contemplada naqueles dois estados de exceção, a requisição civil - consagrada num diploma de 1974 aprovado por um governo apoiado pelo PCP - também "tem um caráter excecional" e pode aplicar-se às atividades de "produção e distribuição de energia elétrica, bem como a exploração, transformação e distribuição de combustíveis destinados a assegurar o fornecimento da indústria em geral ou de transportes públicos de qualquer natureza".
Caso a requisição civil "implique a intervenção das FA, efetiva-se por despacho ou ordem do chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas [CEMGFA]", sendo "referendada pelo ministro da Defesa" e pelos das outras pastas envolvidas. Esse texto deve indicar, entre outros pontos, "a autoridade responsável pela execução da requisição".
Nesse caso, a intervenção das FA "terá um caráter de progressividade" que pode passar por quatro situações - a mais provável das quais, neste caso, será a "utilização de pessoal militar para substituir, parcial ou totalmente, o pessoal civil".
Note-se ainda que, sendo "a defesa da Pátria [um] direito e dever fundamental de todos os portugueses", o governo tem o poder de mobilizar os cidadãos e requisitar recursos materiais ao abrigo da Lei de Defesa Nacional - e "a mobilização pode determinar a subordinação dos cidadãos por ela abrangidos às FA ou a autoridades civis do Estado".
O recurso à declaração do estado de emergência parece excluído neste eventual incumprimento de serviços mínimos e mesmo num setor considerado crítico como o energético, após o Governo dizer ao DN que, nesse caso, "tem outros instrumentos legais ao seu dispor para assegurar a satisfação de necessidades impreteríveis durante os períodos de greve, como é o caso da requisição civil".
A eminência de o país estar perante o que o ministro do Ambiente, Matos Fernandes, qualificou quarta-feira como uma "emergência energética" remete para o diploma relativo "à definição de crise energética, à sua declaração e às medidas de caráter excecional a aplicar nessa situação" - e "sem prejuízo da declaração do estado de sítio ou de emergência, ou da declaração de crise no âmbito da proteção civil".
Como explicava há dias uma nota da Entidade Nacional para o Setor Energético (ENSE), evocando aquele diploma, "a situação de crise energética caracteriza-se pela ocorrência de dificuldades no aprovisionamento ou na distribuição de energia que tornem necessária a aplicação de medidas excecionais [...]" - desde logo identificando a chamada rede estratégica de postos de abastecimento (REPA).
Já a prevista "declaração de crise no âmbito da proteção civil" permitiria o recurso às FA sem necessidade de estabelecer o estado de emergência ou decretar a requisição civil, a exemplo da participação dos militares das Forças Armadas no apoio aos incêndios florestais.
Nesse caso e ao abrigo da Lei de Bases da Proteção Civil, a crise energética poderia levar o Governo a declarar uma de três situações previstas no âmbito da Emergência e Proteção Civil: "alerta, contingência e calamidade."
No primeiro caso, estando "face à ocorrência ou iminência de ocorrência" de acidentes graves - leia-se "um acontecimento inusitado com efeitos relativamente limitados no tempo e no espaço, suscetível de atingir as pessoas e outros seres vivos, os bens ou o ambiente" - ou de catástrofes.
A opção de "declarar a situação de contingência" resultaria da "necessidade de adotar medidas preventivas e ou medidas especiais de reação não mobilizáveis no âmbito municipal" para responder a um acidente grave ou catástrofe, enquanto "a situação de calamidade pode ser declarada quando [...] é reconhecida a necessidade de adotar medidas de caráter excecional destinadas a prevenir, reagir ou repor a normalidade das condições de vida nas áreas atingidas pelos seus efeitos".
A referência genérica sobre a intervenção dos "militares" no caso da greve dos motoristas motivou esta quinta-feira um protesto da Associação Nacional de Sargentos (ANS), considerando que essa expressão tem sido "usada de forma generalista e, como tal, abusiva".
"Aquilo de que se trata é do eventual uso de profissionais das forças e serviços de segurança (PSP e GNR). Pese embora a GNR tenha uma natureza militar, o uso da expressão 'militares' é passível de interpretações, erróneas, que englobem elementos das Forças Armadas", registou a ANS, acrescentando: "É, pois, abusiva tal interpretação bem como quaisquer ideias de uso de militares das Forças Armadas num assunto desta natureza, aspeto que, por certo, não será considerado sem observar os princípios constantes na Constituição."
Enquanto um militar da GNR - que é um agente policial - é, segundo o respetivo estatuto, um "agente da força pública, autoridade e órgão de polícia", os militares das FA estão obrigados a observar alguns princípios no cumprimento das missões de colaboração no território nacional e fora do estado de sítio.
Note-se que a GNR, segundo a lei que aprova a sua orgânica, "é uma força de segurança de natureza militar, constituída por militares organizados num corpo especial de tropas". Mas Jorge Miranda, num seminário em 2018 sobre Segurança, Defesa e Forças Armadas e a propósito do que "são princípios comuns a todos os Estados modernos", afirmou que deles decorre "a consequente impossibilidade de [haver] organizações militares, paramilitares ou militarizadas fora das Forças Armadas".
Conforme escreveu o juiz Mário Mendes há uma década, então na qualidade de Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI) e conforme referido ao DN por fontes militares, essa participação das FA está subordinada a princípios como os da legalidade, reserva de intervenção, "não transferência ou repartição da autoridade, competências e responsabilidade", delimitação temporal e espacial, subsidiariedade e complementaridade, "direção ou supervisão das FSS" e salvaguarda da cadeia de comando.
Segundo Mário Mendes, daí decorre que as FA estão "arredadas de qualquer forma de intervenção paritária face às FSS no contexto da Segurança Interna" - algo que o então CEMGFA, general Valença Pinto, considerou "evidentemente inaceitável".
Para o professor universitário de Direito Francisco Liberal Fernandes, num texto de 1990, a Constituição "consagrou uma separação rígida entre os poderes civil e militar, atribuindo ao primeiro a exclusividade da definição dos princípios e objetivos da defesa nacional [...] e remetendo para" as FA "a função de executar as opções tomadas".
Liberal Fernandes reconheceu, porém, que "as implicações do artigo 273.º" da Constituição - segundo o qual a defesa nacional se desenvolve no "respeito [...] das instituições democráticas" - "inserem-se numa linha evolutiva substancialmente divergente da conceção tradicional das FA", fazendo com que "a democratização das FA" esbarre numa "atitude de oposição por parte da hierarquia militar, ciosa de manter inalterado o poder de direção e de comando nos moldes clássicos".
Com JPH