Braço de ferro entre governo e enfermeiros. Pelo menos 500 cirurgias prioritárias adiadas na primeira greve
Sem terem chegado a acordo com o governo, na reunião de quarta-feira, os enfermeiros voltaram à "greve cirúrgica" em sete centros hospitalares, uma paralisação que se prolonga até ao último dia de fevereiro. E há outro pré-aviso de greve anunciado para o próximo mês.
A falta de consenso sobre o aumento do salário base para início de carreira (atualmente nos 1200 euros) e a antecipação da idade da reforma para os 57 anos levou os enfermeiros de novo ao protesto que acontece nos mesmo moldes da greve que começou a 22 de novembro e terminou no fim de 2018, com quase oito mil cirurgias adiadas.
Pelo menos 500 cirurgias consideradas prioritárias ou muito prioritárias foram adiadas devido à primeira greve dos enfermeiros em blocos operatórios, segundo dados de dois hospitais onde decorreu a paralisação que terminou em dezembro de 2018.
A informação consta de uma resposta enviada à Ordem dos Médicos (OM) por dois dos cinco centros hospitalares em que decorreu a primeira greve cirúrgica dos enfermeiros.
Em meados de dezembro de 2018, o bastonário da Ordem, Miguel Guimarães, recorreu à lei que regula o acesso a informação administrativa para solicitar às administrações dos hospitais onde decorria a greve informação sobre as operações adiadas e a gravidade dos doentes.
Segundo Miguel Guimarães, o hospital de São João não enviou qualquer resposta e só dois dos outros hospitais enviaram elementos que respondiam ao que tinha sido solicitado pela Ordem dos Médicos.
No caso do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC), tinham sido canceladas 1.890 cirurgias desde o início da greve e dia 26 de dezembro, quando foram preparados os dados a enviar à Ordem.
Em Coimbra, pelo menos 430 das cirurgias adiadas eram prioritárias ou muito prioritárias. Em relação ao total, 22% das operações adiadas eram prioritárias e 2% muito prioritárias.
Contudo, do total de cirurgias canceladas o CHUC identificou que 394 cancelamentos foram "resolvidos no período da greve".
Das 1890 cirurgias adiadas, 8% cento eram em operações de crianças.
Na resposta à OM, o CHUC acrescenta que muitos doentes não chegam a estar refletidos nestes dados, porque a respetiva cirurgia não chegou a ser agendada devido às perspetivas da própria greve. "Só virão a ser visíveis no aumento da lista de espera e no aumento de posteriores transferências para o setor privado", refere o centro hospitalar.
No Centro Hospitalar e Universitário Lisboa Norte, ao qual pertencem os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente, mais de 120 cirurgias prioritárias ou muito prioritárias foram adiadas no decurso da primeira greve cirúrgica dos enfermeiros.
Segundo a administração do Santa Maria, quase 15% das cirurgias adiadas eram prioritárias e 3,5% muito prioritárias.
No momento em que enviou a informação à OM, o Centro Hospitalar Lisboa Norte apontava para 676 operações adiadas, mas entretanto, no parlamento, o presidente da administração indicou que mais de 800 tinham sido afetadas pela greve dos enfermeiros.
Novos constrangimentos são esperados nesta greve de longa duração que abrange os blocos operatórios de sete centros hospitalares: Centro Hospitalar S. João (Porto), Centro Hospitalar e Universitário do Porto, Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga, Gaia/Espinho, Tondela/Viseu, Braga e Garcia de Orta.
A Ministra da Saúde, Marta Temido, admitiu a possibilidade de recorrer a meios jurídicos para fazer face a esta nova paralisação e os administradores hospitalares já consideraram a greve "profundamente injusta para com os doentes". Também o Bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, veio defender um alargamento dos serviços mínimos.
Èm declarações à Lusa, o bastonário da Ordem dos Médicos voltou a apelar ao Ministério da Saúde para que divulgue os casos dos doentes com cirurgias adiadas em consequência da greve que começou esta quinta-feira, repetindo o apelo que já tinha feito aquando da primeira greve dos enfermeiros em blocos operatórios.
Miguel Guimarães considera ainda que os serviços mínimos devem ser ajustados de forma a não permitir que doentes prioritários vejam as suas operações adiadas.
A bastonária da Ordem dos Enfermeiros afirmou que na primeira greve em blocos operatórios não houve qualquer situação que tivesse posto em causa a vida das pessoas e considera adequados os serviços mínimos definidos.
Ana Rita Cavaco disse à Lusa que "não houve nenhuma situação que tivesse posto em risco a vida de ninguém, nem houve cirurgias prioritárias a ser adiadas".
A bastonária recorda que acompanhou o cumprimento dos serviços mínimos durante a primeira greve e que os conselhos de administração dos hospitais garantiram que os enfermeiros tinham ido além dos serviços mínimos e aberto mais salas cirúrgicas.
De acordo com Lúcia Leite, presidente da Associação Sindical Portuguesa dos Enfermeiros (ASPE), estrutura sindical que juntamente com o Sindicado Democrático dos Enfermeiros (Sindepor) convocou a greve, o governo não lhes deu alternativa. Ao DN lamentou a "posição inflexível" do Executivo liderado António Costa relativamente à tabela salarial destes profissionais de saúde.
Os sindicatos propuseram um aumento salarial, com início de carreira a começar nos 1613,42 euros, ao contrário dos atuais 1200 euros, mas o governo não satisfez esta revindicação justificando com o argumento da "sustentabilidade financeira". "Não houve sequer uma tentativa de aproximação", afirmou a sindicalista.
"Nós sugerimos que houvesse um faseamento e apresentamos algumas propostas de aproximação, mas o governo não está disponível para fazer um faseamento e não nos dá alternativas", disse Lúcia Leite referindo-se a esta segunda "greve cirúrgica" que começou às 08:00 desta quinta-feira. Um protesto que estava marcado para começar a 14 de janeiro, mas tinha sido suspenso devido às negociações com o Ministério.
Os sindicatos conseguiram, no entanto, chegar a acordo com o Governo quanto à criação de uma carreira com três categorias, incluindo a de enfermeiro especialista. Faltou consenso quanto ao descongelamento das progressões para todos os profissionais, ao aumento do salário base e à antecipação da idade da reforma.
Em comunicado, o Ministério justifica a razão pela qual não cedeu na questão salarial nem na antecipação da idade da reforma. Afirma que a proposta dos sindicatos para um aumento salarial, com início de carreira a começar nos 1613,42 euros teria "um impacto financeiro estimado em 216 milhões de euros, e idade da reforma aos 35 anos de serviço e aos 57 anos, um impacto financeiro estimado de 230 milhões de euros".
"A questão da sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde [SNS] já está posta em causa há muitos anos com a má gestão que tem sido feita dos recursos do SNS", afirmou a presidente da ASPE, Lúcia Leite, que à agência Lusa reagiu às declarações da ministra da Saúde na RTP.
Marta Temido afirmou na quarta-feira, numa entrevista à estação pública, que compete ao governo responder "a dois problemas, o problema dos utentes do SNS e da sustentabilidade dos serviços público".
"Portanto, não podemos fazer escolhas que ponham em causa nenhum dos dois aspetos", afirmou Marta Temido, referindo que "não é possível fazer um reposicionamento que implique um aumento salarial de 400 euros para 42 mil pessoas", apontando que só esta exigência implica um custo de 216 milhões de euros.
A presidente da ASPE reconheceu que os valores podem ser "relativamente elevados", porque a paragem em termos de carreira tem muitos anos. "Recuperar o passado nalguns casos de 20 anos tem um impacto financeiro imediato grande, nós temos consciência disso e por isso propusemos um faseamento" para recuperar com algum tempo esse prazo o que não foi aceite pelo Governo.
Contudo, "fazer crer à população que são os enfermeiros que estão a pôr em causa o SNS" é um "argumento de muito má fé".
"Estar a querer sacar essa responsabilidade aos enfermeiros que têm sido os profissionais mais prejudicados ao longo dos últimos 20 anos, além de injusto, é um argumento de muito má fé", vincou.
Lúcia Leite deu alguns exemplos da "má gestão" dos recursos do SNS, como o investimento que o SNS faz no Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia (SIGIC).
"Chega a pagar a um único médico numa tarde o ordenado de um enfermeiro de um mês, o que considero uma gestão danosa do SNS e que tem implicado custos elevadíssimos, com um aumento progressivo dos vales de cirurgia e que transfere para os serviços privados o pagamento de serviços que os serviços públicos deviam estar a assegurar", exemplificou.
Apontou ainda "a má gestão" das camas com internamentos que se "prolongam indevidamente à espera de cirurgia", por "má gestão de equipas e de salas", e a "baixa utilização das salas operatórias que maioritariamente trabalham no período da manhã e estão desaproveitadas nos períodos da tarde e da noite".
Tudo isto "tem a ver com uma ineficiência do sistema que até agora ninguém tem querido resolver", afirmou.
À RTP, a ministra da Saúde afirmou que o protesto dos enfermeiros "convoca para uma reflexão sobre questões éticas, deontológicas e sobre o exercício do direito à greve" e admitiu usar meios de reação jurídicos face à nova paralisação. Lúcia Leite considerou que são "uma forma de pressão sobre os enfermeiros para criar insegurança" e "demovê-los de fazer greve".
São também "uma forma de pressão sobre a sociedade, criando a ideia de que esta greve é injusta para o cidadão e é ilegítima, o que não é verdade", frisou.
Lúcia Leite disse ainda desconhecer qualquer argumento jurídico que possa ser usado relativamente a esta greve, que foi decretada como todas as outras dentro dos procedimentos legais e foi o objeto de decisão de serviços mínimos por parte do Tribunal Arbitral.
"Não vejo em que medida a senhora ministra pretende utilizar argumentos jurídicos contra esta greve", mas "se o objetivo é criar uma discussão, uma reflexão ou qualquer outra via de oposição do direito à greve ao direito à vida parece-me que este não é o momento para fazer uma discussão séria sobre essa matéria".
E, sustentou, "também não consta e não há conhecimento dos sindicatos" que tenha havido algum prejuízo irreparável para os utentes.
Já Carlos Ramalho, do Sindepor, diz recorrer a meios jurídicos é "um direito que assiste" à governante e que já não é a primeira vez que o faz.
"Já na greve anterior a ministra pôs em causa, primeiro, a legalidade, depois, a legitimidade desta greve, pediu um parecer à Procuradoria Geral da República [PGR], que os sindicatos até hoje ainda não tomaram conhecimento. Presumimos que não foi favorável, senão o ministério tinha-o tornado público", afirmou.
Carlos Ramalho afirmou que a greve dos enfermeiros nos blocos cirúrgicos de sete centros hospitalares, que se prolonga até 28 de fevereiro, "cumpre tudo aquilo que está legislado em termos de direito à greve".
"Cumpre os trâmites e limites da lei. Os serviços mínimos, não tendo havido acordo entre as partes, (...) foram estabelecidos pelo mecanismo próprio, ou seja, pelo tribunal arbitral e pelos juízes que fizeram a sua avaliação e, por isso, não vejo nada que esteja para além do limite do aceitável", acrescentou.
O presidente da Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, manifestou "enorme preocupação" com esta segunda greve dos enfermeiros às cirurgias programadas. À Lusa, afirmou que na primeira greve "ficou claro que houve efeitos sobre a saúde individual dos doentes" e estima que algumas pessoas que viram a sua cirurgia adiada aquando da primeira greve possam voltar a ser afetados nesta segunda paralisação, até porque há hospitais onde a greve se repete.
"A grande questão é que a greve tem efeito sobre doentes que não têm alternativas. Não têm seguro ou subsistema e não podem recorrer a privados. É uma greve profundamente injusta para com os doentes", afirmou o representante dos administradores hospitalares.
Tal como fez na primeira paralisação, entre novembro e fim de dezembro, Alexandre Lourenço insiste que o Ministério da Saúde tem de divulgar publicamente e numa base diária o número de doentes graves que fica sem acesso a cirurgia.
Apesar de haver serviços mínimos decretados, o administrador hospitalar considera que são insuficientes, tal como já tinha admitido, por exemplo, a Ordem dos Médicos.
"Tem de haver consciência dos efeitos que a greve está a ter nos doentes. Mas não me parece que tenha havido essa sensibilidade", lamenta o presidente da Associação dos Administradores Hospitalares.
O coordenador do Programa Nacional para Doenças Oncológicas, Nuno Miranda, defendeu que as cirurgias oncológicas devem ser todas abrangidas pelos serviços mínimos da greve dos enfermeiros, advertindo que o seu adiamento pode comprometer o tratamento do doente.
"Tenho muita dificuldade em perceber que se faça greve a cirurgias oncológicas, porque se a quimioterapia faz parte dos serviços mínimos e não se atrasam a quimioterapia e a radioterapia, acho que a cirurgia, até pela importância que tem na oncologia como primeira arma e arma mais eficaz na maioria dos casos, devia ser abrangida também pelos serviços mínimos", disse Nuno Miranda à Lusa.
O médico oncologista sublinhou que é preciso pensar quais são as "maneiras mais adequadas" e "sem comprometer o direito dos trabalhadores" para minimizar o impacto da greve dos enfermeiros às cirurgias programadas, cujos serviço mínimos apenas abrangem as operações oncológicas mais prioritárias.
"Independentemente da muita razão que assiste aos enfermeiros nas suas reivindicações, não estou minimamente a pôr isso em causa, a cirurgia oncológica tem que ser repensada porque senão podemos estar a comprometer o tratamento logo desde o início porque vai atrasar tratamentos que podiam ser mais eficazes", defendeu Nuno Miranda.
Por isso, sustentou, é preciso pensar-se "quais são as maneiras mais adequadas, e sem comprometer os direitos dos trabalhadores, que têm de ser respeitados", para que a greve tenha "um menor impacto em situações de crise como são as de doença oncológica".
Uma fonte do Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) explicou à Lusa que estão abrangidos pelos serviços mínimos as cirurgias oncológicas com prioridade três e quatro.
Em relação à primeira greve cirúrgica, que durou mais de um mês, Nuno Miranda disse que houve cirurgias oncológicas adiadas, sublinhando que atualmente está em curso "um programa para recuperação dos atrasos sem compromisso das cirurgias já agendadas".
"Não é apenas empurrar tudo para a frente para encaixar esses doentes, é um programa verdadeiramente de recuperação e que neste momento está a ter sucesso e se espera ultrapassar o aumento de necessidades", sublinhou.
Segundo dados avançados pela ministra da Saúde, Marta Temido, a primeira "greve cirúrgica" levou ao adiamento de mais de 7500 operações, das quais 45% já foram, entretanto, realizadas e outras 45% estão programadas até março.
As duas greves foram convocadas por duas estruturas sindicais, embora inicialmente o protesto tenha partido de um movimento de enfermeiros que lançou publicamente recolhas de fundos para compensar os colegas grevistas que ficam sem ordenado por aderir à paralisação. Ao todo, para as duas greves, o movimento "Greve Cirúrgica" recolheu mais de 740 mil euros através de uma plataforma na internet.
Para a primeira greve foram recolhidos mais de 360 mil euros e para a que começou esta quinta-feira, os enfermeiros conseguiram mais de 420 mil euros.
O fundo serve para financiar os enfermeiros dos blocos que adiram à paralisação. Serão dados 42 euros por cada dia de greve que seja descontado do vencimento. Segundo a página criada pelo movimento, o dinheiro será transferido para a conta dos enfermeiros nos dias seguintes à entrega da folha de vencimento onde estejam discriminados os dias em que o profissional fez greve.
O modelo de greve é considerado inédito em Portugal, não só devido à sua duração como pela criação de um fundo de recolha de dinheiro para financiar os grevistas.
Há outro pré-aviso de greve do Sindepor. Uma paralisação que irá começar a 8 de fevereiro e termina no final do mês, sendo alargada a mais três centros hospitalares: Centro Hospital e Universitário de Coimbra, Centro Hospitalar Lisboa Norte (Santa Maria) e o Centro Hospitalar de Setúbal.
São afetadas as cirurgias programadas, dependendo da quantidade de enfermeiros que aderem à greve. A paralisação pode afetar até algumas cirurgias oncológicas com menor grau de prioridade. Contudo, as operações consideradas urgentes serão sempre realizadas, porque há serviços mínimos a cumprir, como em qualquer greve no setor da saúde.
Aquando do primeiro período de greve, no final do ano passado, o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República considerou que é lícita a convocatória da greve dos enfermeiros, mas alertou que caso caiba a cada enfermeiro decidir o dia, hora e duração da greve, o protesto é "ilícito".
Esta é a conclusão de um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), solicitado pelo Ministério da Saúde e que só o divulgou parcialmente.
Sobre a possibilidade de recorrer à requisição civil, a ministra da Saúde tem afastado essa hipótese, considerando até que é uma "opção extrema" e que só se usa quando não há cumprimento de serviços mínimos.