Por detrás de Green Book, o filme que na noite do último domingo venceu os Óscares de melhor filme, melhor ator secundário (para Mahershala Ali) e melhor argumento original, está uma boa parte da história do século XX americano contada por um guia de estrada de capa verde..O livro Green Book, que no filme de Peter Farrelly é usado pelo pianista negro Don Shirley numa digressão pelo sul do país com o seu motorista e guarda-costas ítalo-americano Tony Vallelonga, conta a história de uma América em cujas estradas era perigoso um negro viajar. Podia ser morto, humilhado, maltratado, corria o risco de não ter onde comer, dormir ou ir à casa de banho, se não conhecesse os sítios onde lhe era permitido entrar. "Leve o seu Green Book consigo... pode precisar dele!", lê-se, não por acaso, na capa..O documentário The Green Book: Guide to Freedom, realizado por Yoruba Richen, estreou-se nesta segunda-feira no canal americano Smithsonian Channel (da CBS). Partindo de filmagens de arquivo e de depoimentos de descendentes de afro-americanos que usaram o Green Book para viajar entre as décadas de 1930 e final de 1960, bem como dos filhos dos proprietários dos lugares que eram assinalados naquele guia como permitidos ou aconselháveis a negros, conta que importância teve aquele livro na vida de inúmeros afro-americanos..O Green (verde) daquele guia de estrada vem do seu criador Victor Hugo Green, um trabalhador dos correios negro que o criou em 1936 para permitir aos afro-americanos aventurarem-se pelas estradas do país quando o uso do automóvel se tornou uma tendência crescente..Green inspirou-se num livro que um amigo judeu usava para saber a que lugares podiam os judeus ir nas montanhas de Catskills. "Isto seria ótimo para as pessoas negras, precisamos de um livro como este", terá dito. Além disso, a sua mulher tinha família no estado da Virgínia. Eles viviam em Nova Iorque. Sabiam, por isso, o que era viajar nas estradas americanas sendo negros..No Green Book encontrava-se uma lista que mostrava onde os condutores negros e as suas famílias podiam comer, dormir, ir à casa de banho, e que clubes noturnos, oficinas ou barbearias poderiam frequentar. Em sucessivas edições que foram sendo atualizadas entre 1936 e 1967 (três anos depois da Lei dos Direitos Civis ser aprovada), o guia chegou a reunir numa lista 9500 estabelecimentos..A certa altura, no filme, uma das pessoas entrevistadas diz: "Se não temos provas, como podemos dizer que aconteceu?" Aquele guia de estrada é uma prova daquela América onde existiam, por exemplo, as sundown towns, ou seja, cidades onde os negros não podiam estar depois de o sol se pôr. Podia ser um sinal visual ou um sinal sonoro que todos os dias avisava os trabalhadores negros que era hora de deixar a cidade. No documentário vê-se, por exemplo, Pierce City, no Missouri, onde os habitantes brancos queimaram toda a parte negra da cidade depois de lincharem um homem injustamente acusado de homicídio. Até há pouco tempo ainda não havia ali afro-americanos..Em 1930, 44 dos 89 distritos que a famosa Route 66 atravessava eram sundown towns. A Atlantic lembrava num longo artigo sobre o porquê de os negros não partilharem da definição comummente ouvida daquela como "estrada dos sonhos" que, em plena Route 66, em Edmond, no estado de Oklahoma, um café anunciava: "Um bom lugar para viver. 6000 cidadãos, nenhum negro.".Falamos de uma América onde era comum os condutores negros terem um chapéu de motorista no carro para o caso de serem interrogados pelas autoridades sobre o facto de aquele carro ser propriedade sua, ou para o caso de tal incomodar alguém..Um guia com muito mais do que "espeluncas".Yoruba Richen explica que, ao contrário do que se possa pensar, o sul dos Estados Unidos, onde então vigorava a lei segregacionista de Jim Crow, não era o pior lugar do país para viajar. "Era muito mais difícil viajar pelos estados do norte e do oeste porque não havia sinais [segregacionistas]", disse à Vox a realizadora de The Green Book: Guide to Freedom. "Não se sabia que lugares eram perigosos e em que lugares não era suposto entrarmos.".O guia começou por ser Green Book - Negro Motorist Guide e passou mais tarde a Green Book - Negro Motorist Guide to Travel and Vacation. Afinal, parte da história contada por aquele guia tem que ver com as opções que os afro-americanos tinham para as suas férias, desportos e diversão. No livro constavam resorts de férias como Idlewild, no Michigan, que entre os seus músicos chegou a ter Sarah Vaughan e Louis Armstrong. No início dos anos 1950, cerca de 25 mil pessoas frequentavam aquele lugar..A realizadora viu o filme Green Book, vencedor de três Óscares, com certas reservas. "[Eles] Vão a lugares que são uma espécie de espeluncas. E isso é muito frustrante porque esse não era o único tipo de lugares que constavam no Green Book. O Green Book tinha 9500 entradas, entre os quais lugares como o Gaston Hotel, que foi considerado o melhor hotel para negros do país no seu tempo.".O Gaston Hotel em Birmingham, no Alabama, serviu, aliás, de sede a Martin Luther King e Ralph Abernathy durante o seu trabalho em Birmingham, e o seu proprietário foi um dos financiadores da campanha pelos direitos civis..Numa outra entrevista que deu, ao programa Fresh Air, da rádio NPR, Yoruba Richen explica que durante a maior parte da sua existência o guia se limitava a enumerar os sítios seguros e aconselháveis para negros, e não constatava diretamente a questão do racismo e da discriminação. "Só nas últimas edições é que o livro começou a referir quais eram as condições. Numa das últimas cópias dos anos 60 abre-se [o livro] e diz: conheça os seus direitos. Tinha as leis dos direitos civis aprovados a nível dos estados em todos os estados. Mas não era necessariamente um livro político.".Não deixa de ser impressionante para nós, que vivemos num tempo em que rapidamente formamos uma comunidade com alguém que está na Índia, na China ou na Noruega, que Victor Hugo Green tenha conseguido formar aquela rede de informações nos anos 1930, permitindo-lhe fazer um guia que cobria todo o país.."Ele tinha a sua rede de trabalhadores dos correios negros de quem conseguia informação. 'Então sabe onde estão os negócios de negros?' 'Onde estão as comunidades negras?' Também encorajavam os proprietários de negócios a publicitar [aqueles lugares] no livro", explicou a realizadora..Green Book era vendido nas bombas de gasolina da Esso (hoje Exxon), o que o tornava um livro fácil de encontrar e de grande circulação. Richen lembra que muitos dos leitores o partilhavam e emprestavam "ao seu vizinho, a um membro da família que estava a viajar ou ia viajar. Também se passava de boca em boca. E os estabelecimentos tinham-nos"..Quando viu o arquivo fílmico do National African Museum of History em Washington D.C., a realizadora percebeu que queria fazer um filme com aquelas imagens familiares, caseiras. Afinal, uma grande parte da história de que aquele guia é testemunha consiste nisso mesmo: como é que os afro-americanos daquele período podiam visitar a família, passar férias juntos, ou apenas fazerem-se livremente à estrada.