'Grâce a Dieu' - a pedofilia mesmo à nossa frente

O inquietante<em> Grâce a Dieu</em>, de François Ozon, abalou o Festival de Berlim. O cinema francês a ser portador de mensagem social do presente.
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Caiu que nem bomba na competição oficial do Festival de Berlim, Grâce a Dieu, o novo de François Ozon, a reconstituição metódica de um caso que está a abalar a França neste momento: o processo das centenas de vítimas de um padre pedófilo de Lyon.

O filme tem uma componente de denúncia factual, sobretudo tendo em conta que o resultado dos tribunais está aprazado para o começo de março. O cineasta francês utiliza o cinema e a sua manipulação ficcional para dar voz a um caso que coloca em causa toda a credibilidade da Igreja Católica em França, em especial o cardinal da diocese de Lyon.

Ozon disseca a génese de um processo que já fez com que a justiça francesa mudasse a lei de prescrição dos crimes sexuais contra crianças de 20 para 30 anos.Grâce a Dieu (Graças a Deus, em português, porque num discurso para a imprensa o chefe da Igreja Católica disse "graças a deus, os crimes prescreveram") tem um peso de choque franco e brutal, quer na espantosa impunidade do padre criminoso quer pela forma como entra no interior da dor de um adulto traumatizado por uma infância corrompida.

Há sequências de uma intensidade rara, mostrando-se sem paninhos quentes sequências de abuso sexual às crianças, nomeadamente num episódio de escuteiros numa visita a Portugal em 1986. A câmara de Ozon é sempre elegante e ética na "acusação" mas não recua perante os horrores da pedofilia e essa é uma das novidades deste objeto de cinema que poderá propagar ondas de escândalo. Na sessão de imprensa, esta manhã, foi aplaudido mas o que mais impressionou foi o silêncio de cortar à faca nas cenas de abuso sexual. No final, em fundo negro a informação de que o padre pedófilo continua em liberdade, mesmo tendo assumido a sua "doença", perturbou os milhares que enchiam a concorrida sessão no Berlinale Palast, na Postdamer Palatz.

Grâce a Dieu começa quando um Alexandre, pai de família com 40 anos, decide ser o primeiro a denunciar publicamente o abuso a que foi sujeito pelo padre que nunca foi destituído. A partir daí, outras vítimas juntaram-se e deram voz a uma epidemia de abusos, tendo mesmo formado uma associação de apoio às vítimas.

Tenso e com uma dureza emocional forte, Grâce a Dieu não tem para já estreia comercial confirmada em Portugal, mas não deixa de ser um dos mais surpreendentes filmes de François Ozon, cineasta que pela primeira vez faz um filme-inquérito. Aqui o dedo está na ferida mas nunca a mesma está escarafunchada sem ordem e moral.

Na Berlinale, chamada de atenção para o mergulho angolano de Carlos Conceição em Serpentário, apresentado no Forum. Filme escancaradamente livre sobre as nossas memórias de infância em formato de poema visual. Bela estreia de um dos mais prometedores cineastas nacionais.

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