Governo adiado: Empresários preocupados com atraso nos fundos, no investimento e nas reformas
Há preocupação na voz dos empresários. Num momento em que esperavam já estar a desenvolver vias para a retoma e a assegurar investimento e projetos, com os fundos europeus a dar fôlego a empreendimentos novos ou adiados pela pandemia - Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e PT2030 -, a ambição volta a ficar pelo caminho. Depois de seis anos de geringonça, a estabilidade garantida por uma maioria absoluta perdeu força e abalou os ânimos depois de a compreensível contestação aos votos dos emigrantes deitados para o lixo ter obrigado a repetir todo o processo eleitoral do círculo europeu.
Parlamento e governo, só no final de abril. Orçamento do Estado (OE), talvez lá para o verão. E pelo meio esvai-se tempo para aplicar os fundos europeus, adia-se as reformas fundamentais, deixa-se sem chão as empresas de setores gravemente lesados pela pandemia (e cujos apoios entretanto terminaram) e empurra-se com a barriga medidas, incluindo fiscais, fundamentais para que a retoma aconteça com a brevidade que se impõe.
Há quem esteja mais otimista e quem já só acredite em recuperação no fim do ano, mas numa coisa todos concordam: a trapalhada eleitoral vai atrasar retoma e reformas.
Bruno Bobone é contundente. "O atraso da tomada de posse do governo, motivado pela repetição das eleições no círculo europeu é claramente um prejuízo para a retoma da economia e para a vida dos cidadãos. Em vez de poderem retomar com entusiasmo a normalidade, vão ter de voltar a colocar a vida em pausa por incompetência dos políticos que lideram o nosso país."
Para o presidente da Câmara de Comércio e Indústria de Portugal (CCIP), a gravidade dos efeitos estende-se à candidatura aos fundos de recuperação e de desenvolvimento, "com o óbvio prejuízo da sua rentabilidade efetiva". E põe em sério risco os tempos definidos para a bazuca ajudar a levantar a economia portuguesa.
"Esta sucessão de atrasos está a transformar-se numa verdadeira anedota, altamente lesiva das empresas e da economia", diz também Rafael Campos Pereira, que lidera a associação dos metalúrgicos (AIMMAP). O empresário justifica a preocupação com os efeitos da inexistência de um quadro orçamental, que constrange a implementação de medidas de estímulo à economia e de apoio às empresas, com destaque para as de natureza fiscal e de incentivo à inovação, à qualificação de recursos humanos ou à internacionalização. "O adiamento da tomada de posse do governo põe o país em banho-maria", resume, indicando como principais problemas o adiamento de decisões políticas e a inação dos diferentes organismos da administração pública. "Os membros do governo em funções sentem-se num limbo e não reconhecem a si mesmos legitimidade para tomar medidas que não sejam de mera rotina e a administração pública sente-se sem apoio ou controlo e atrasa os seus próprios processos", elenca.
A par disto, Rafael Campos Pereira alerta para o condicionamento à execução e desenvolvimento de medidas enquadradas no PRR e o bloqueio do PT2030. "Já não será possível iniciar a execução no primeiro semestre de 2022, isso é certo e causará enormes prejuízos à economia, congelando ou até cancelando alguns investimentos."
A preocupação com a perda ou encolhimento da oportunidade dos fundos europeus é transversal aos representantes de todos os setores de atividade. Com um PRR muito alavancado no investimento público, "o facto de não haver OE que acomode os investimentos significa que ele não arranca, o que trará atrasos e riscos de incumprimento com reflexos no setor privado", expõe o líder da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP). E há ainda a execução do PT2020. "Sabemos que, por exemplo, o POCH já comunicou dificuldades de tesouraria, porque a gestão orçamental em duodécimos limita a concretização da despesa. Não será de estranhar que o mesmo aconteça noutros programas operacionais", diz João Vieira Lopes, que acredita que "estão em causa vários pacotes financeiros, incluindo PT2020, PT2030 e PRR".
Também a Associação Empresarial de Portugal (AEP) vê com "elevada preocupação" os efeitos do adiamento na entrada em funções do novo governo, a começar pelo facto de "impedir a desejável e tão necessária aceleração na implementação dos fundos europeus", ainda que "o PRR beneficie do regime excecional de execução orçamental". "O PT2030 constitui uma importante fonte de financiamento e de estímulo ao investimento privado que ajudará o país a recuperar rapidamente e a crescer de forma sólida, mais equilibrada e sustentável", lembra Luís Miguel Ribeiro. "É importante não esquecer que Portugal ainda não atingiu o nível de atividade pré-pandemia, tão forte foi a recessão económica em 2020 (-8,4%), a mais grave das últimas seis décadas", sublinha.
"As decisões das empresas, sobretudo no que respeita a investimentos estruturais, não estão dependentes de um OE em duodécimos, mas há nisto um impacto negativo", confirma Gonçalo Lobo Xavier. Em nome das empresas de distribuição, realça a falta de interlocutores por mais uns meses e a indecisão e instabilidade fiscal decorrente do adiamento do processo como fatores mais negativos.
O secretário-geral da APED acredita também que estes atrasos vão ter impacto nos timings das decisões do PRR e que isso vai provocar constrangimentos. Mas acrescenta outras razões para a sua apreensão, nomeadamente "algumas decisões e legislação ambiental feita nos últimos dias de vigência do atual governo, poucos dias antes das eleições, e que tem muito impacto na vida das empresas". Por outro lado, os efeitos da ausência de contacto até fim de abril vão repercutir-se em temas urgentes. "Este atraso vai provocar ainda mais indecisão no tema dos apoios para recuperar a economia e a sociedade", lamenta Gonçalo Lobo Xavier.
Acreditando que a execução do PRR está salvaguardada, assim como a resposta a situações urgentes, para o líder da CIP, o principal problema é o "adiamento da tomada de medidas de fundo e das reformas de que o país necessita para sustentar um novo ciclo de crescimento em bases sólidas e duradouras". As semanas adicionais sem Assembleia, sem governo em pleno exercício das suas competências e sem OE "traz um impacto negativo à economia", admite António Saraiva. Mas a preocupação do representante dos patrões vai mais além: "O atraso adia a conclusão do Acordo de Parceria do qual resultará o PT2030, empurrando ainda mais o lançamento dos respetivos programas."
A este tema, Vieira Lopes junta outra questão: se a maioria das empresas não depende diretamente do Orçamento do Estado e até temos certa segurança quanto à manutenção dos traços gerais do documento chumbado no ano passado, o que assegura alguma previsibilidade às empresas, "este atraso pode refletir-se nos pagamentos do Estado aos fornecedores, agravando uma situação crónica". "E ainda adia eventuais atualizações de contratos públicos, o que, num cenário de aumentos generalizados de preços e do salário mínimo, é preocupante", junta o responsável.
"A economia não para e não se pode desperdiçar os fundos que nos chegam através das instâncias europeias, seja através do PRR seja através do próximo quadro comunitário", concorda Ana Jacinto. A representante da hotelaria e restauração (AHRESP) lembra o papel relevante do PRR "na recuperação e dinamização da atividade económica e os prazos relativamente curtos (até 2026) para a sua execução" e reafirma que esses objetivos "não podem ficar comprometidos".
No setor cultural, a preocupação é semelhante: a necessidade de não perder tempo que é premente para a recuperação do país já em 2022. E nisso o OE tem um papel fundamental para a tomada de decisões das empresas. "Perante os péssimos resultados do estudo sobre a participação cultural dos portugueses, que conhecemos nesta semana, ao novo Parlamento e ao novo governo exige-se uma mudança radical das políticas culturais e de apoio ao setor. Algo que será atrasado por este erro crasso de gestão do processo eleitoral", lamenta Álvaro Covões. O empresário e promotor cultural lembra que os setores mais prejudicados pela pandemia, como a Cultura, "necessitam, neste início de retoma, de apoios extraordinários para que o ecossistema se mantenha saudável no retorno à atividade económica normal".
Esse é, aliás, outro tema focado pelos empresários como problemático. "Este compasso de espera é muito negativo para todas as empresas, mas ainda mais para as de setores que saíram mais fragilizados da crise pandémica", concorda Luís Miguel Ribeiro. Vieira Lopes concretiza: "É um ponto muito negativo, tanto mais que o governo, após o chumbo do OE2022, deixou de apresentar novas medidas de apoio, não obstante ter havido novas restrições ao exercício da atividade no comércio e em muitos serviços", diz, defendendo que estas empresas têm de ser amparadas. "Não há estrutura financeira que aguente tantas flutuações de atividade e temo que estas empresas vão ser esquecidas, principalmente se, como esperamos, entrarmos numa fase mais tranquila da pandemia", diz o líder da CCP.
O sentimento é comum aos que têm negócios na área do turismo. "Os apoios disponíveis para as empresas dos nossos setores já são muito poucos e os que ainda existem são de dificílimo acesso", resume Ana Jacinto, lembrando que há muito que a AHRESP defende a necessidade de ajudar estas empresas também na recuperação. "Após dois anos de crise pandémica e de muitas restrições ao funcionamento das atividades, o reforço da competitividade deve ser uma prioridade, com especial destaque para o fortalecimento dos capitais próprios, das tesourarias e da confiança dos consumidores. Quando está prestes a iniciar-se mais um período de época alta, estas atividades económicas têm de ter condições para contribuir para o aumento da riqueza nacional e do emprego, mas isto só pode acontecer se não houver destruição do tecido empresarial", adverte.
A secretária-geral da AHRESP sublinha que o fim da pandemia não trava os novos desafios "que atingirão em cheio as nossas empresas", incluindo o "aumento galopante dos preços de energia, das matérias-primas (produção e distribuição), a consequente inflação e o possível incremento das taxas de juro", ingredientes que podem conduzir a uma "tempestade perfeita com consequências imprevisíveis".
Para setores ou segmentos de atividade especialmente penalizados não só pelas restrições para combater a pandemia como pelas alterações verificadas na economia mundial em consequência da covid, Rafael Campos Pereira considera "essencial haver um governo com energia e legitimidade renovadas para implementar as eventuais medidas de apoio que mitiguem esses efeitos negativos".
Olhando a floresta do crescimento prometido e todos os elementos em jogo no tabuleiro da recuperação e das reformas urgentes, o líder da AIMMAP tem um receio maior: "Que não seja possível concretizar nada até ao final do ano, o que fará agravar ainda mais os prejuízos." Apreensão que Bruno Bobone partilha e cujos efeitos urge evitar, sob pena de Portugal ficar ainda mais para trás. "Uma economia que precisa de se relançar não pode atrasar a recuperação - isso significa recomeçar de um patamar ainda mais fundo", resume o líder da CCIP.