Gota de água para Marcelo foram declarações de Costa
O clima entre os palácios já não é o que era. Ficou chamuscado no braseiro de junho e de outubro, e foi atiçado pelos quase quatro meses de avisos presidenciais e inação governamental. Belém não nega que todos os passos e prazos estivessem acertados entre Presidente e primeiro-ministro - Conselho de Ministros extraordinário, anúncio de medidas e demissão da ministra da Administração Interna - mas, sugere-se, alguém terá falhado ao combinado e não foi o Presidente. Já lá iremos.
O tempo e o modo são a chave para compreender o atual estado das relações entre Belém e São Bento. A Presidência faz questão de relembrar a linha do tempo político entre o pós-Pedrógão e a declaração que Marcelo Rebelo de Sousa fez ao país a partir da Câmara de Oliveira do Hospital, no rescaldo dos incêndios deste mês.
Há vários momentos de sobressalto e alerta presidencial, como a entrevista ao DN em que Marcelo disse, sobre Pedrógão e Tancos, que "se há responsabilidades tem de haver responsáveis". Estávamos no início de agosto e o governo vivia tranquilo sem novas tragédias e à espera das conclusões da comissão técnica independente (CTI) e de outros relatórios. Com o passar das semanas, a espera desesperou o Presidente.
No discurso do 5 de Outubro sublinhou a necessidade de um Ministério da Administração Interna confiável e que tudo fizesse "para que as portuguesas e os portugueses saibam que as suas vidas e os seus bens estão seguros". Dez dias depois, na véspera dos incêndios e já 48 horas depois de publicado o relatório da CTI, Marcelo regressa a Pedrógão e, perante as famílias das vítimas, com um discurso escrito, termina a dizer que "já perdemos todos tempo de mais", no fundo exigindo que António Costa fosse rápido na reparação às famílias das vítimas e a retirar conclusões políticas dos relatórios entretanto conhecidos.
Domingo, com os ventos do Ofélia a ajudar, os incêndios e as mortes regressam. Já na madrugada de segunda-feira, 16 de outubro, e ainda com parte do país a arder, o Presidente entra em direto e ao telefone na emissão da SIC Notícias para dizer que esperava que se retirassem conclusões do que estava a acontecer e que se analisasse "todo este verão, que começou muito cedo e que acaba muito tarde".
O copo estava já muito cheio, quase a transbordar. Belém sublinha que durante toda a crise, durante todo o verão, Marcelo e Costa mantiveram o ritmo habitual de contactos e conversas. Tudo estava combinado? Sim, mas o que fez transbordar o copo? Terão sido dois momentos e um pormenor. O pormenor terá sido o secretário de Estado da Administração Interna dizer que as comunidades têm de ser mais proativas e não podem ficar à espera de helicópteros e aviões que venham resolver os seus problemas.
Os dois momentos terão sido as duas intervenções de António Costa na sequência dos incêndios deste mês. Primeiro na madrugada de dia 16, de visita à Proteção Civil, quando afirma que "situações como esta vão repetir-se" e que lhe parecia um pouco infantil "a ideia de que a consequência é a demissão da ministra"; depois, a declaração ao país, às oito da noite de dia 16.
A relativa frieza de Costa foi o toque final numa lista presidencial de faltas apontadas nessa declaração: faltou um pedido de desculpas às vítimas e ao país em nome do Estado; faltaram medidas concretas e faltou que fossem retiradas consequências políticas das duas tragédias - a ministra da Administração Interna continuava em funções.
Entre Belém e São Bento, muito mudou a meio de um outubro com calor fora de tempo e no fim de um verão com uma lista de vítimas dos incêndios que teima em estar "em atualização".
Já depois da resposta dura que o Presidente deu ontem à notícia que relatava o estado de choque do governo com o discurso de Marcelo em Oliveira do Hospital, alguém da comitiva perguntava: "Afinal, quem atirou a primeira pedra? Quem furou o plano?"
Resposta nos Açores
O clima entre Belém e São Bento agravou-se ontem depois de fontes do governo terem garantido ao Público que o executivo ficou chocado com o discurso de Marcelo na semana passada. E foi depois de ter assistido a um exercício militar na Praia da Vitória, ao lado da Base das Lajes, ilha Terceira, que o Chefe do Estado respondeu de forma dura.
O Presidente diz que pouco importa agora o nível de choque dos diversos protagonistas desta história e que quem não compreender isso não entende o que se passou no país nas últimas semanas.
No miradouro da serra do Facho, sobre a Praia da Vitória, Marcelo começou por explicar que "há duas maneiras de encarar a realidade. Uma maneira é o diz-que-diz especulativo de saber quem ficou mais chocado, se A com o discurso de B, se B com o discurso de A, e depois há uma segunda maneira, que é a de compreender que chocado ficou o país com a tragédia vivida, com as milhares de pessoas atingidas".
Não respondendo diretamente ao choque socialista, o Presidente insistiu que o país, naquela altura, depois dos incêndios de outubro, "esperava naturalmente uma palavra dirigida às vítimas e que espera, com urgência, reparação, reconstrução e olhar para o país atingido". E aqui Marcelo recorda a urgência da matéria. "Rapidamente, primeiro porque esse país não pode ser esquecido e em segundo lugar porque faltam menos dois anos para o fim da legislatura, deste Parlamento e deste governo. Há uma urgência."
Depois deste novo conjunto de palavras duras dirigidas ao executivo, o Presidente deu a resposta à pergunta que lançou. O que é mais importante ou qual é a forma correta de olhar a realidade? "Entendo que a forma correta é a segunda e quem olha para a realidade na base do diz-que-diz especulativo não entendeu e não entende nada do que se passou em Portugal nas últimas semanas."
Uma frase recuperada do discurso de Oliveira do Hospital, para quem não tenha compreendido a mensagem. Nesta resposta às "fontes do governo" que confessaram o choque do primeiro-ministro, Marcelo deixa uma última nota: "O importante são as vítimas e as vidas perdidas, tudo o resto é totalmente irrelevante."
De pé ao lado do Presidente, o ministro da Defesa escutou toda a resposta em silêncio. Quando questionado sobre se também tinha ficado chocado com o discurso de Marcelo em Oliveira do Hospital, Azeredo Lopes limitou-se a dizer: "Ainda bem que pergunta. Não, não fiquei chocado."