"Gosto de estar vivo." É o segredo para quem quer chegar aos 100 anos
"Estou para as curvas e para as retas, mas gosto mais das retas". É assim que Carlos Negrão responde quando questionado sobre a sua saúde aos 100 anos, acabados de fazer. E, claro, não falta a piada, observam os filhos. Vive na sua casa, é uma pessoa saudável, de hábitos, de disciplina e alimentação equilibrada, com humor, que gosta de viver a vida. Descrição da filha Fátima, próximo de quem vive e que o apoia, em Cantanhede, Coimbra.
Os dias de Carlos Negrão começam cedo: às 07h00/07h30. Levanta-se, faz a barba, gosta de se vestir logo, dobra o pijama e puxa os lençóis da cama. Aprecia uma camisa nova e não dispensa a gravata se vai sair, também um casaco. E o telemóvel no bolso. Tem uma cuidadora durante o dia e que não interfere nos rituais, o que a família acredita ser a forma de o manter mais ativo.
Alto, magro, boa resistência física, medicamentos para as dores só em último recurso. Caminha sem ajudas e se puder dá a sua voltinha, nem que seja para ir às compras, neste caso com a cuidadora. À noite tem a companhia da filha, o que acontece desde fevereiro, quando teve um problema cardíaco. E é com ela e com o marido que passa os fins de semana. "Se vamos passear, ele também vai, e gosta", conta Fátima.
Fez 100 anos a 2 de setembro, celebração especial e ele sempre a responder aos parabéns e abraços. Nunca pede nada, mas a família já sabe o que oferecer: roupa e cadernos de passatempos. Gosta de fazer palavras cruzadas e sopa de letras. Teve seis filhos - cinco vivos -, nove netos e sete bisnetos.
"Adora o Preço Certo, vê desde o primeiro programa", conta a filha. Há 31 anos. Entretém-se com os passatempos, deixou há tempos o sudoku, também a viola e o piano. "Sinto que se está a desprender de algumas coisas da vida, mas continua muito ativo. Gosta de conversar, embora um pouco repetitivo, mas sempre com muito humor e continua a ser saudável", conta Fátima Negrão, 67 anos, psicóloga, ex-professora do ensino especial.
A mulher, Felismina, faleceu no ano passado, tinha 91 anos. Uma situação que o confunde. Por vezes, tem consciência de que já não está a seu lado; outras, pergunta por ela. Mas sempre sem queixas ou lamúrias. "Graças a Deus tenho boa saúde, não me posso queixar, passo o tempo com as palavras cruzadas, a televisão. Desde que não sofra, estarei cá enquanto Deus quiser."
Carlos Negrão recorda ao DN os tempos de Moçambique e o regresso forçado a Lisboa após o 25 de Abril. A sua história começou em Cantanhede, onde nasceu, deu uma volta de 360 graus, para regressar à terra há 12 anos. Ele e a mulher foram viver para junto de Fátima, que estudou e trabalhou em Lisboa. Nascerem as filhas, gémeas, e decidiu trocar a capital por um meio pequeno, há 30 anos. Em 2009, os pais juntaram-se-lhe.
Os dois filhos mais velhos tinham nascido quando Carlos e Felismina, que era do Porto mas que conheceu em Lisboa, emigraram para Lourenço Marques, hoje Maputo, onde nasceram mais quatro filhos. Abriram o seu negócio, uma ourivesaria. Após o 25 de Abril, a família veio de emergência para Lisboa. Encontrou emprego no ramo ourives, até se reformar. "Vivi em Lourenço Marques, depois no Cacém, voltei a Cantanhede. Sinto que tive sorte na vida, embora não seja milionário, levei uma vida razoável", resume Carlos Negrão.
É esse positivismo que, para os filhos, lhe tem dado anos de vida, além dos genes. "A minha avó era muito enérgica, muito ativa, morreu na sequência de um atropelamento mas ainda foi para casa a dizer que não era nada. Os meus irmãos também não parecem a idade que têm", recorda Fátima. Atribui a causa principal para a longevidade à vida que o pai leva. "Está no seu ambiente, com a família. Tem também a ver com a disciplina que leva, tem cuidado com a alimentação, come a horas certas, não bebe, não fuma. E não tem graves problemas de saúde, até parece que parou a nível das doenças". E, ir para um lar não é opção. "Quer morrer em casa".
A descrição de Fátima assenta na perfeição na experiência clínica de Manuel Carrageta, internista e cardiologista, presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia e da Sociedade Portuguesa de Geriatria e Gerontologia. Contextualiza que existe, desde 1980, um aumento médio de dois a três anos na esperança de vida dos residentes em Portugal por cada década, logo, um aumento dos centenários.
Inicialmente, a esperança de vida aumentou devido ao controle das doenças infecciosas. Nos últimos anos, explica o especialista, deve-se ao controle das doenças cardiovasculares, a principal causa de morte em Portugal, um terço das mortes. "Começámos a tratar os fatores de risco, hipertensão, colesterol. Hoje, quando observamos um doente, fazemos um cálculo da previsão do risco de doenças cardiovasculares para conseguir controlar o aparecimento dessas doenças, a alimentação e uma vida saudável são fundamentais".
"Portugal é o terceiro país da Europa com maior percentagem de idosos (21,7% em 2018), depois da Itália (22,7%) e da Grécia (21,9%), e em que o peso dos jovens é mais reduzido (13,8%), ultrapassado apenas pela Itália (13,3%) e a Alemanha (13,5%). É uma situação quase inversa ao que se passava em 1960, quando éramos o sexto país com maior percentagem de jovens (29,3%) e o quarto em que a proporção dos maiores de 65 anos era menor (8%)", refere o estudo Como envelhecem os portugueses, de Maria João G. Moreira, publicado pela Pordata em 2020.
Manuel Carrageta dedica parte da sua clínica aos mais velhos, salientando que os centenários são especiais. "São pessoas diferentes, que em geral, têm poucas patologias. Psicologicamente, são otimistas, positivos, muito sociáveis. Também tiveram problemas na vida - morreram filhos, foram à guerra, tiveram acidentes, perderam os empregos -, mas são resilientes, isolam os problemas. Têm uma família ou um grupo de amigos importante e que se apoiam. São alegres, riem muito, ativos. Acordam com um propósito na vida, têm sempre um objetivo".
A componente genética é importante mas contribui apenas com 20 a 30 % para a longevidade, há outros fatores que se revelam mais importantes, nomeadamente o meio ambiente, salienta o médico. "Parece que chegam aos 90 e tal anos e deixam de envelhecer, que ficam parados no tempo. Não têm graves problemas de saúde, quando o normal é o número de doenças aumentar com a idade. Estes indivíduos parece que são isentos de patologias, são relativamente saudáveis e, sobretudo, alegres."
Melhor exemplo do que o médico acaba de dizer é o de Adriano Moreira, advogado, professor , político, que completou 99 anos a 5 de setembro. Entre as atividades que mantém, é cronista do Diário de Notícias e preside ao Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. Só deixou de dar aulas na Universidade Católica com a pandemia, aos 97 anos, desde o primeiro confinamento.
É um dos fundadores da cátedra UNESCO - Educação e Ciência para o Desenvolvimento e Bem-Estar Humano, lançada neste ano. O curso, por via digital, resulta de uma colaboração entre a Academia e a Universidade de Évora, do qual Adriano Moreira é professor.
Responde com uma gargalhada à pergunta: Qual é o segredo? "A pergunta é difícil, se tivesse um segredo usaria. Não tenho nenhum segredo. Mas, se fosse um segredo, garanto-lhe que o guardava", brinca. Reflete para voltar a sublinhar. "É estar atento às exigências da saúde e, sempre que vão aparecendo, tentar resolvê-las. É a sabedoria. O principal é que gosto de estar vivo, é fundamental."
Adriano Moreira está todos os dias à sua secretária a trabalhar às 09h30, para se deitar por volta da meia-noite. Começa por ler os jornais, para se inteirar da atualidade. Lê e escreve muito. Tem seis filhos e 15 netos.
Portugal já ultrapassou a fasquia dos 5 mil centenários. E, em 2050, poderão ser 10 245, segundo o estudo da Pordata: O perfil do Idoso em Portugal, publicado em 2020. "O país envelheceu porque melhoraram as condições de vida e de saúde que possibilitaram um alargamento do ciclo de vida. Vive-se mais tempo e, previsivelmente, assim vai continuar a acontecer, pelo que o número de pessoas idosas vai continuar a aumentar", pode ler-se no documento.
Segundo o Instituto Nacional de Estatística, as pessoas com 100 e mais anos são mais numerosas no centro (134 indivíduos) e menos nas regiões autónomas (87 na Madeira e 118 nos Açores). Há mais mulheres do que homens (1828 homens e 2415 mulheres). Vivem sós ou com os companheiros.
Segundo a Carta Social, a percentagem de pessoas idosas em lares de idosos continua relativamente baixa, 4% (cerca de 92 800 indivíduos). "Todavia, deve ressalvar-se que estes números apenas incluem as pessoas que estão nas respostas sociais tuteladas pelo Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social em funcionamento em Portugal Continental", ressalva o estudo.
Os cuidadores são principalmente os cônjuges e os filhos, papel que assume importância fundamental com os de 80 e mais anos, que são particularmente vulneráveis. "Além da idade, têm características sociodemográficas que condicionam o seu estado de saúde: mais mulheres, viúvas, com baixos níveis de escolaridade e rendimentos, o seu principal rendimento é proveniente da reforma."
Não existe um estudo sobre os centenários. Podem tirar-se algumas ilações, nomeadamente em que zonas ocorrem menos mortes por doenças cardiovasculares. É a razão de 20% da mortalidade em São Brás de Alportel (Faro), e 42% em Cinfães (Viseu).
A alimentação e o estilo de vida são fundamentais. Manuel Carrageta dá o exemplo de algumas localidades como Loma Linda, na Califórnia, em que se vive em média mais dez anos do que em outras zonas dos EUA. Os seus habitantes têm tendência vegetarianas, comem muitas nozes pecã. Na Sicília, numa zona junto à costa, mais isolada, vive-se com uma dieta mediterrânea.
"Mas onde se vive mais é no Japão, no arquipélago de Okinawa, que tem clima quase tropical, nem muito frio nem muito calor. Vegetarianos, comem pouco, são muito ativos e os velhos são muito respeitados, têm apoio social e amigos. Ingerem menos de 40% de calorias do que os norte-americanos em média, simulam nos humanos uma estratégia de longevidade aplicada ao mundo animal, que é a chamada restrição calórica. Reduzir as calorias mas fornecendo os nutrientes e vitaminas necessários, o que aumenta a esperança de vida dos animais. No caso das ilhas japonesas, têm menos 80% de enfartes, muito menos demências, 50% menos de cancro da próstata e do ovário, são muito mais saudáveis", explica Manuel Carrageta.
Maria de Jesus deve muito da sua longa vida à alimentação, também ao meio rural onde vivia, no Tubaral, freguesia da Caranguejeira, Leiria. Vai fazer 108 anos no dia 4 de novembro, nasceu em 1913, numa família de seis irmãos.
Vive no Lar Emanuel, em Leiria, associação que já teve seis centenários ao mesmo tempo nos seus dois espaços. A mais velha, Romana Marques, faleceu a cinco semanas de fazer 111 anos, a 15 de junho de 2019. Dizia que o seu segredo era comer sempre um dente de alho e esfregar-se com álcool.
Maria de Jesus tinha 103 anos quando deixou a sua casa. "Foi sempre muito ativa e capaz de tomar as suas decisões. Quando achou a altura, escolheu este lar, onde estava há vários anos um dos seus filhos por motivos de saúde", conta Sara Martins, animadora sociocultural, licenciada em Medicina. O filho é Joaquim Gameiro, 84 anos, há 21 anos na instituição.
Magrinha, sorridente, faz as refeições no refeitório com os restantes utentes, perfeitamente autónoma, apenas precisa de uma cadeira de rodas para melhor se deslocar. Os óculos compensam a falta de vista, ouvir é que é mais difícil. O que não a impede de responder às solicitações para as fotos e, até, fazer pose.
Trabalho nunca lhe faltou, conta. Era costureira e, inclusive, ia a casa de várias pessoas para lhes fazer roupa. Também trabalhava no campo, "nas fazendas". Tudo isso foi terminando à medida que os filhos nasceram. Teve dez, o primeiro aos 24 anos. Tem netos (três já faleceram) e 20 bisnetos. Segundo uma das filhas, a longevidade é de família, a mãe da Maria de Jesus faleceu com 104 anos. O seu maior desejo: ver a família unida apesar de serem muitos e bem diferentes.
Sara Martins pensa em todos os centenários com que tem convivido, gente do campo e da cidade, com vivências diferentes. Em comum têm o facto de ser ativos, independentes, bem-dispostos. Explica: "São pessoas determinadas, sabem como gostam de ser tratadas e nós respeitamos a sua identidade, o que é muito importante. Temos um grande sentido de família, de proximidade, o que ajuda a manterem-se saudáveis. Temos cuidado com a higiene e com as instalações, os quartos têm muita luz, eles passeiam nos jardins."
Isabel II envia carta
A história que se conta para sublinhar o aumento de centenários começa em Inglaterra, em 1900. O rei Jorge V resolveu mandar uma carta de parabéns, assinada pelo seu punho, a todos os súbditos que tivessem 100 ou mais anos. Assinou uma carta e lá foi o carteiro de bicicleta entregar a missiva do rei. A homenagem mantém-se e, hoje, Isabel II precisa de sete funcionários para fazer este serviço.
Mais de 86 mil no Japão
O Japão é o líder dos centenários, com 86 510 pessoas com 100 ou mais anos. Número avançado para assinalar o Dia do Respeito pelos Idosos (20 de setembro). É feriado e estas homenagens aos velhos são consideradas mais-valias. Mas é nas ilhas Okinawa (sul) que se vive mais: têm 68 centenários por 100 mil habitantes. Mais importante que a genética é a alimentação - vegetariana e menos calórica e o meio ambiente e social -, o clima tropical e uma vida ativa.
O segredo de Loma Linda
Loma Linda é uma cidade da Califórnia, a 100 km de Los Angeles. Os fundadores da Igreja Adventista do Sétimo Dia compraram uma propriedade na área no início do século XX e, hoje, são metade da sua população: 24 mil habitantes. Estudos mostraram que vivem até dez anos mais do que a média dos americanos (78,54 era a esperança de vida nos EUA em 2019) e isso deve-se ao estilo de vida adventista: dieta vegetariana, exercício físico e um dia de descanso semanal. "Os adventistas parecem morrer das mesmas doenças, mas morrem muito mais velhos", segundo Larry Beeson, professor de Epidemiologia da Universidade de Loma Linda.
Longevidade em Portugal
Não há um estudo sobre as zonas com maior longevidade no país, mas há indicadores. Em São Brás de Alportel (Faro) morre-se menos de doenças cardiovasculares, a principal causa de morte. Tem 20%, mortes devido a estas doenças, abaixo dos 33% de Portugal e longe dos 42% de Cinfães (Viseu). Os que têm 65 ou mais anos estão mais no interior do país. Alcoutim é o concelho com uma maior percentagem de idosos, 46%. Ribeira Grande, nos Açores, tem 9%.